sexta-feira, 28 de março de 2008

Rua Augusta - São Paulo

Passam por mim e não me percebem. Eu procuro um olhar cruzado. Meus lábios já estão feridos pelo frio e a ventania. Deles sai um leve vermelho sangue e doce que amortece minha língua. Esse é o meu gosto. Pela manhã cortei o cabelo tentando ser mais uniforme comigo mesmo. Olhei-me pela manhã e me odiei.

Até há pouco encontrava-me caminhando. Cruzei a Praça da Sé e novamente quis entrar na igreja para dar quinze passos a partir da porta e olhar para cima até ter meu queixo apontado para o teto que parece não chegar. Fiquei assim imóvel até doer meu pescoço e de um só lance abaixei minha cabeça e sai. Os vitrais, as curvas e aquele redemoinho estavam lindos e nem o cinza da tarde ofuscou aquela luz amplificada.

Então veio o metrô e as pessoas estavam cansadas e com olheiras. Um casal de estrangeiros estava maravilhado com a novidade. Quis ser eles para poder sentir o novo.

A Avenida Paulista congela e racha meus lábios, por mais uma vez. Há vitrines douradas por todos os lados. Os sebos hoje estão todos desinteressantes e levemente mais empoeirados do que já estiveram. Tenho uma nota no bolso que trocaria por qualquer romance que salvasse minha vida. O lugar mais aconchegante é o cyber café dominado por pessoas com dois buracos fundos no lugar onde deveriam estar os olhos. E então elas não se olham.

Na Rua Augusta queria caminhar até o fim e encontrar aquela curva à esquerda que sempre estranhei. Ofegar. Hoje estive em jejum durante todas as horas e meu estômago mal notou. Quando comi, entreguei-me ao prazer irracional de mastigar e engolir e assim consegui me desligar de todo o mais que estava ao meu redor.

É assim que os cães fazem.

6 comentários:

Victória D. disse...

Seu fotolog me trouxe uma paz estranha. E o título também.
Gostei daqui.

Abraço.

Richard Lowenthal disse...

Legal Sensei! Gostei muito da forma com que conduziu a narração e do final! Continue com os contos em primeira pessoa!

Lúcia disse...

Arekusu san... Este é o primeiro conto seu que leio... E me senti tranportada para o seu olhar na narrativa! Era como se eu caminhasse dentro da personagem, presa mas ao mesmo tempo, não presa, pois olharia e sentiria da mesma forma! Parabéns! Adorei!

Alex P. disse...

Rushia san ! :-)

Muito grato pelo interesse em ler estas coisas que escrevo.

Seu comentário me revelou a realização de um desejo particular, que, imagino, é o de todo pretenso escritor, como eu: o de transportar o leitor para o universo criado pelo pequeno conto, e o próprio olhar da personagem que habita esse universo.

Agora.... tê-la "presa" e ao mesmo tempo "livre" ao ler esta história, foi muito além de minhas expectativas !

Seu olhar é também um tanto quanto melancólico assim ?

beijo

Lúcia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lúcia disse...

Pois é, Arekusu san... Muitas vezes, melancólico... A poeira nos livros dos sebos... Aquele ar de passado esquecido, abandonado... Eu adoro, mas sempre saio com uma impressão estranha, de que quase voltei no tempo... sabe? E acredito que os livros "usados" carregam um pouco da alma de seus antigos donos... E tornam-se ainda mais vivos, mais cheios de história! Se não pelo lado espiritual, talvez pelas dedicatórias, pelas marcas deixadas... Muito forte isso né? Beijos mil!