sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Um dia, lá pelo ano de 2007 ou 2006, bem acompanhado eu fui até uma favela no Parque Bristol, em São Paulo, lá onde funcionava o Centro Cultural Maloka, um lugar onde acontecia, aos sábados à noite, saraus de poesia.

Eu nunca fui lá muito frequentador de saraus, embora ache que quando feito com sincero espírito poético desavergonhado, encanta até a mais dura alma.

Na minha cabeça doentia, sarau mesmo é aquele em que a gente se senta numa taverna ao lado de Lord Byron e bebe vinho até cair.

Mas claro, a gente lê também e tenta entonar a voz conforme o ritmo dos versos, conforme a tensão que eles nos impõem, cambaleando entre a fina textura da voz que clama pelo amor perdido até a mais voraz escarrada de revolta.

Naquela noite a gente caminhou por vias estreitamente tortuosas da favela do Parque Bristol. Encravejadas umas nas outras, atropelando-se mutuamente as casas, muitas vezes achei que um simples escorregão me jogaria sentado no sofá da sala daquela família reunida que assistia a novela, dado que uma fina parede de papel as separava da tortuosidade das ruas.

Se bem que haveriamos de vencer essa dificuldade, pois que a poesia - mesmo que fora de moda, não há mais paciência para ela -havia se embrenhado também naquele lugar, como nós mesmos, vencendo pontes de madeira sobre córrego fétido e ruas anônimas.

Tudo já vencido, lá dentro não diferiu das coisas tortas. Mas que surpresa ! Um sarau integrado massivamente por crianças ! Nas mesas havia profusão de coisas: pincei Carlos Drummond, pesquei Vinicius de Moraes, odiei ver Manuel Bandeira em pedaços e me encantei com a dor de amor de Florbela Espanca. Mais um monte de outros: Ferreira Gullar, Álvares de Azevedo... Será que vi mesmo um Poe jogado em algum lugar ?

Nada havia de ruim nas vozes trêmulas e inseguras das crianças que se arriscavam nos versos. Também elas tinham de vencer tortuosidades várias de um mundo nascido para ser duro. Um alvoroço pela próxima leitura até que na minha vez eu preferi não ousar, mandei qualquer um de Drummond na certeza de que ninguém erra nessa escolha.

Eu nem sei quais daquelas criaturas ainda leem poesia, quais ainda vão a um sarau, qual vai ser poeta a expressar a dor de seu tempo. Vai saber. Que importa ? Se elas se lembrarem, daqui há muito tempo, que um dia leram poesia em voz alta...

Ora ! Eu me lembro de uma noite de minha infância em que escondi embaixo de meu colchão - como viria a fazer com algum baseado anos mais tarde - um livrinho que falava sobre um louco que se julgava cavaleiro e era apaixonado por Dulcinea, enquanto ouvia pérolas de seu fiel amigo.

E por que diabos fui me lembrar dessa remota lembrança ? Vai saber ! Acho que o mundo que vem pela frente deve ser tão tão merda, que eu desejo a todas elas que um dia se lembrem de que leram algo que poderia significar uma coisa diferente.

Elas podem estar encarceradas em penitenciárias ou em luxuosos palácios, mas como diz Rilke, mesmo um homem preso em uma cela horrível é capaz de olhar para dentro de si e resgatar as sensações e as histórias da infância.

Depois eu fui embora com o espírito algo leve. Poesias com vozes infantis. Tortuosidades. Paredes sem reboco.

Depois, mais tarde, ainda comi uma pizza.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A literatura salva e depois abandona

Iniciaram um diálogo rápido mas substancial, daqueles em que não há desperdício de palavras, rodeios ou passos em falso:

"O que é que você tá lendo nesse fim de ano ?", perguntou o nobre gaijin alemão.

Para o que ouviu a seguinte resposta: "hmmm... o mais relevante é que ando lendo os contos da Virginia Woolf. Logo o primeiro trata de duas irmãs que são educadas para o casamento e se deparam, em uma festa, com um outro tipo de mulher, uma mulher que se interessa pela vida, pela política, pelos pensamentos. O amor é apenas mais um departamento, não a loja toda."

"Parece bom realmente. Mas encontrar uma mulher assim também deve ser difícil..."

"Por isso que é vale a pena se refugir em contos... Lá acontece, ué ! Mas me diga, o que é que você está lendo agora ?"

"De relevante mesmo, coisa que tem marcado, é um livro de um escritor alemão contemporâneo. Basicamente é um livro que retrata como ele conseguiu se curar, se libertar, por meio da literatura!"

"Ah é ? Não posso negar que isso é interessante, pois que é real. Mas sempre suspeito de pessoas que se salvam por meio de qualquer coisa... mas...... me fale mais sobre esse alemão !"

"Não sei tanto assim. Mas sabe um cara que tem cerca de trinta anos, que passou por uma história amorosa, ou deveria dizer mesmo uma frustração amorosa, e que ficou tão mal com tudo isso, que resolveu contar sua história ? Pois então, é isso."

"E aí escreveu um livro..."

"É ! Escreveu um livro. A gente pode dizer que o cara se salvou por meio da literatura. E mais do que isso, um monte de gente se reconheceu na história dele, né, e aí o cara ficou conhecido e virou escritor de vez. É aquela coisa de sempre: o amor é tão óbvio que muitos se reconhecem nas histórias alheias."

"É a inevitável obviedade mesmo.... Mas sabe que é uma história encantadora ? Tem lá seu charme, não é? Imagine isso acontecendo comigo !"

O gaijin ironizou o doce sonho do amigo:

"Escritor paulistano que virou escritor porque tomou um pé na bunda da amada. Escreveu tanto mas tanto que várias pessoas igualmente frustradas como ele se enxergaram na história e compraram seu livro."

Rindo, o preterido escritor concordou: "Tem razão ! Mas eu deveria inserir alguns pontos que certamente o alemão desconhece: histórias de família, pecaminosas, sabe ? Nelson Rodrigues, meu caro..."

"Claro ! E aí você seria mais um a se salvar por meio da literatura... ainda que ficasse um pouco sujo com ela também. De toda forma, não é interessante um cara que tem mais ou menos nossa idade fazer isso ?"

"Realmente.... até se questiona se a literatura pode salvar de fato. Logo eu que desconfio de salvamentos... Mas é uma coisa interessante sim...afinal... foi por meio da literatura... Porra, vou confessar vai, é uma história bonita pra caralho. Esse alemão poderia ter se matado, virado crente, louco, sei lá. Mas objetivou sua história, elaborou suas frustrações e criou algo..."

"Sim...Há um mérito do cara... 'Salvar-se !' Não é para todo mundo..."

E antes que encerrassem a conversa, lembrou-se de um detalhe importante que havia lhe escapado à mente:

"Porra ! Já tava esquecendo. Não foi só a literatura, não ! Na mesma época que ele escreveu o livro, já estava com uma outra mulher também, coisa forte e tal..."

"Ah é ? Caralho... Você não deveria me dizer isso ! Quer dizer então que o filho da puta escreveu, tá certo, mas ao mesmo tempo ele já estava amando de novo ? Já tinha outra mulher... é isso ?"

"É isso aí..."

"Só vou dizer uma coisa, tá ? Vai tomar no cú ! Ninguém se salva é porra nenhuma ! Ah ! E foda-se a literatura também !"

Rindo muito, o gaijin construiu e descontruiu impunemente um sonho que não deveria jamais ter se esboçado naquela frágil criatura !

Despediram-se e foram embora. Decerto se sentiram mais leves - mesmo que mais frustrados - pois largaram a tal da literatura lá no chão.

Carregar peso?

Jamais !

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Cão

Se fosse antigamente, isso seria uma fotonovela. Nos tempos modernos é uma fotonovela mais sofisticada, com narração e trilha sonora. Cai meio de gaiato nessa história, mas o resultado me agradou também.

"Um cão. É isso que eu sou, um cão. Ele manda, eu ataco. Ele manda, eu paro… Merda acontece. Mas o salário paga bem. Não é pela grana. O negócio todo é não precisar pensar. É confortável ter alguém pensando por você, alguém que toma as decisões."

http://www.balaiobranco.com.br/2008/10/cao/

Ficha técnica:
Texto, Música e Edição:Rodrigo van Kampen
Fotografia:Carol Dargel
Narração:Thiago Scabello
Modelo:Alex Pantoja

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

guerra e paz

Fogos luminosos explodiam no ar, formando arcos coloridos que se espalhavam pelos céus como se subitamente estes tivessem ousado assumir o lugar das águas do mar.

Nas areias, de tudo: de Iemanjá a saltos desconcertados sobre as ondas, de garrafas que emporcalhavam a praia até resoluções irreais para reconfortar a mesmice.

O fato é que não havia nada de novo naquilo que de novo recomeçava.

Para cada fogo, para cada explosão, naquele reveillon de 2009, uma angústia inesperada se apoderava de meu peito, na medida em que a certeza de que a muitos e muitos espaços dali, fogos e explosões de verdade caiam como um inferno na terra, sob as cabeças de muitos.

Não é nada fácil encontrar algum pensamento próprio que seja seguro e isento de paixões potencialmente prejudiciais.

Nessa história lamentável do conflito bélico entre judeus israelenses e muçulmanos palestinos, que nesse exato momento ocorre sobretudo na pequena extensão de terra da Faixa de Gaza, minha impressão é que tudo - ou quase tudo - é incompreensível por um lado, um verdadeiro "diálogo de loucos", mas que é tudo também certo e esperado, por outro lado.

Difícil é a abstração da força descomunal que é a fé religiosa, exaltada pelos dois lados do conflito. Analisar a guerra atual apenas sob o ponto de vista religioso, embora ele seja importantíssimo, seria desconsiderar os demais fatores preponderantes: o político em primeiro lugar, seguido dos fatores econômicos e culturais.

Focar uma guerra como essa apenas do ponto de vista econômico e político, por sua vez, seria amplamente insuficiente diante do verdadeiro oxigênio em fogueira, que é a convicção teísta escancarada por todos os envolvidos.

Onde encontrar um ponto seguro para analisarmos a verdadeira tragédia que se manifesta numa bomba que explode em uma escola da ONU, matando crianças que não pediram para estar naquele lugar ? Onde encontrar um equilíbrio quando mísseis do Hamas, disparados a partir de instalações civis, igualmente mata israelenses do outro lado da fronteira ?

Podemos, sem sobra de dúvida, fixar um possível marco fundamental nesse conflito armado, que se deu exatamente na criação do Estado de Israel, no período pós-segunda guerra, sem que se atentasse com firmeza para o fato de que ali já era território ocupado pelos palestinos em tempos anteriores e que, retirá-los desse território para que viessem a ocupar sua periferia, seria uma estratégia inevitavelmente equivocada.

Um centro quase que exclusivamente judeu em meio a uma mar de descontentamento muçulmano seria a concretização máxima da renúncia a uma convivência pacífica e compartilhada do mesmo território, por populações com convicções diferentes. Nisso houve falha dos aliados vencedores, se não quisermos enxergar mesmo uma política claramente definida de escolha de um dos lados.

O fato é que não há mais volta - ao menos não uma volta sem sangue - e o Estado de Israel já está amplamente consolidado. Assim como os incontáveis palestinos que mais do que um povo retirado do território que ocupavam, se tornaram refugiados nas periferias da terra de onde outroram ocupavam.

O caminho da violência, fustigado pela fé religiosa de ambos os lados, nada mais faz do que expressar em balas e projéteis aquilo que deve ser mesmo insolúvel: uma fé não se compactua com a outra. Um nasce para odiar o outro.

Quem pode prever o rastro que se seguirá da atual guerra ? Se houver ainda dois lados ao final dela, quem poderá prever a carga de ódio germinada a partir do que acontece hoje aos nossos olhos ?

Como podemos escolher um dos lados, de forma segura, se cada qual se encontra imbuído da mais imbecil convicção religiosa a lhe motivar os sorrisos ao contabilizar os mortos do outro lado da fronteira ?

Se não há porto seguro, se não há lado que se possa escolher com alguma certeza, sem que essa escolha implique em reconhecer que há injustiças também pelo lado escolhido, que há vítimas e algozes em quaisquer dos lados, ainda que um lado mais do que outro, então a escolha deve ser - como já apontado por Marcos Nobre em sua coluna semanal na Folha de São Paulo - uma militância radical pela paz.

Pelo imediato cessar-fogo e trégua na absurda guerra que acontece hoje, para que com a intermediação de outros protagonistas mundiais, possa se estabelecer um patamar mínimo de negociação sem infligir baixas horríveis, sem mortes de crianças, com algum resquício de razão nessa verdadeira loucura que é esta guerra.

Voltaire - sempre ele - estava mesmo coberto de razão: as religiões seguem o binômio autoritarismo e conformismo. Quem nela está inserido deve se conformar aos ditames impostos sem questionamentos profundos. Quem nela não está inserido, deve ser excluído.

Militância radical pela paz não quer dizer discurso pacifista inconsequente e ingênuo. Mas você - eu - que não mataria qualquer um por um discurso maniqueísta, consegue dizer qual dos loucos é o menos louco ?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Tudo que é humano se corrompe

Normalmente, quando algo começa, impregna-se dos maiores desejos de êxito os projetos a que se decide canalizar alguma energia. União de esforços individuais, criação de esforço coletivo, sonhos e projeções, todos estão na raiz dos grandes projetos levados a cabo pela humanidade.

Sob a denonimação de grandes projetos temos de tudo, independentemente do valor ou julgamento histórico, ético e político que se possa fazer sobre seu conteúdo: do anarquismo ao nazismo, da escravidão à terceirização, do mercantilismo ao capitalismo high-tech, da luta dos primatas contra a supremacia da natureza até o atual ecologismo, do processo de criação da democracia ao longo dos tempos, dos mais diversos caminhos e meios criados para a elevação do espírito do homem, alcançando até mesmo o mais simples projeto individual.

Inexiste projeto humano que não esteja impregnado da essência que lhe confere exatamente esse caráter: a capacidade de lidar com um futuro inexistente e incerto, a partir de uma perspectiva positiva e otimista, havendo em cada um dos projetos uma tentativa de superação da realidade e crença em um certo futuro.

Porém, se por um lado há esse caráter esperançoso em qualquer projeto, tirânico ou não, por outro constata-se que a natureza humana tinge com outra cor os mesmos projetos.

Pela simples aplicação da regra de que tudo que é humano se corrompe atingimos uma ceifa universal: após delírios e esforços, após crescimentos e vítórias, dos louros se segue inevitavelmente a corrupção.

Dos mais belos sistemas políticos já idealizados e postos em prática pelo homem, não se pode negar que os mesmos foram também corrompidos por culpa do mesmo. Nas mais belas relações amorosas, a corrupção oriunda do homem rompe a integridade com que outrora se definiu o amor. Nos mais íntegros sistemas de ética concebidos, a prática humana foi capaz de deitar por terra uma vida virtualmente virtuosa.

Mesmo as religiões construídas a partir do desemparo humano, encontram seus limites, suas dúvidas, quando colocadas em choque com o real do homem no mundo.

Se há algo, assim, que não pode ser definido como simples pessimismo na compreensão geral das coisas, mas sim como marca que carrega aquilo que é projetado pelo homem, é que sua falibilidade a todo momento nos dá prova de sua existência.

Também é isso ser o humano.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Tema recorrente aqui, disso não há sombra de dúvida, é a morte.

Se não é a morte, socorro-me de seus correlatos, de suas consequências de toda ordem.

Assim é que as renúncias, evanescimentos, perdas de objetos reais e imaginários, funeral, caixões, são apenas variações semânticas, por vezes literárias, dos abismos de todo gênero que contaminaram os textos nesses tempos.

Ao cumprirem diligentemente uma de suas funções, a de evidenciar a minha intolerância à finitude das coisas e às diversas nuances da aspereza do real, posso me reconhecer, com marca indelével na testa, de que não passo de um homem em estado infantil.

É ao diluir-me nas minhas representações de morte que me revolto contra minhas saturações.

Uma morte programada, planejada, calculada.

Nada mais.