sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Onirismo com Pedantismo I

Misto de sutileza da febre que, como pluma de fogo, assoprava bafo quente em meu rosto, aliado às imagens de destroços provocados pelo recente conflito armado na Georgia, vistos por parcos segundos na TV, provocou-me pedante delírio nesta noite que se passou:

Sonhei com Maiakóvski ! Ou melhor dizendo, no meio de um sonho permeado de total escuridão, uma voz grave e decidida, atropelando-se incessantemente no enunciar das frases desordenadas, assim bradava, com o império de quem se pretende monopólio dos ouvidos:

"Fumo de tabaco roi o ar..."
"Recorda -atrás desta janela pela primeira vez apertei tuas mãos, atônito"


O sujeito de voz grave também bradou outras frases, as quais morreram na infinita profusão do inconsciente que não existe (viu, alemãzinha ?).


Fico ansioso em saber e angustiado por não recordar. Terá esse digno, culto e nobre visitante da minha noite ardente, recitado outros trechos que já se foram da minha memória, ou quiçá, trechos que eu desconheço por completo ? Terá ele falado de plenos pulmões além de Lilitchka ? De ananás e de outras coisas mais ?


Atenção Sr. Visitante ! Caso me contemple com nova visita, e assim desejo, já aviso de antemão que odiaria ouvir essa voz grave me importunar no escuro:
Não acabarão com o amor,
nem as rusgas, nem a distância.
Está provado,
pensado
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme
fiel
e verdadeiramente.

Não ! Não me venha, Sr. Visitante, com otimismos.
Passar bem !

terça-feira, 23 de setembro de 2008

simbolismos e cansaços

Anos atrás, quando Lula finalmente chegou à presidência do Brasil, ecoava incessantemente entre os mais diversos setores da esquerda: um torneiro-mecânico, de origem pobre e nordestino, alcançou o mais alto posto político do país, pouco mais de dez anos após o enterro definitivo da ditadura militar brasileira.

Nesse acontecimento histórico da política brasileira, dizia-se - ou ainda se diz - que havia um simbolismo inegável: um operário era o presidente do Brasil.

Tambem há anos atrás, quando nos reuniamos por meses a fio, tentando um mínimo de coesão entre grupos políticos de tendências, princípios e objetivos tão diversos, como ecologistas, anarquistas, comunistas, idealistas, estudantes, independentes, rockeiros, metafísicos, céticos etc, tentando organizar uma grande manifestação "anti-globalização", a ser reproduzida simultaneamente em diversos países do mundo, alcançávamos algum sucesso nesse intento: no dia da manifestação, a Av. Paulista ou o centro velho da cidade de São Paulo, era parado, havia visibilidade, cobertura da imprensa e violência da polícia.

Nesse acontecimento histórico da esquerda não institucional brasileira, dizia-se - ou ainda se diz - que havia um simbolismo inegável: a juventude, sobretudo, mostrava publicamente que a globalização não era unanimidade no pensar político, e que globalização econômica não se traduzia em justiça, igualdade e vida digna em nível global.

Há meses atrás, um grande amigo meu me convidou para visitá-lo em sua casa. Ao cumprir minha promessa e efetivar a visita, entre conversas e bebidas agradáveis, foi-me mostrado um pequeno quadro pintado por sua ex-companheira. No quadro, havia uma delicada pintura circular feita a tinta nanquim, na qual dois traços suaves e arredondados, separados em seu início, se espalhavam pelos espaços em branco da tela, para então se unirem agradavelmente no topo da mesma, formando um único e grosso lance de tinta.

Nessa pequena e despretensiosa pintura realizada pela ex-companheira de meu amigo, dizia-me este - e ainda me diz - que havia um simbolismo inegável: o amor já enterrado, já passado, já morto, ainda se encontrava incrivelmente vivo pela interferência do símbolo que ela havia construído para o sentimento que nutriam entre si, ainda que lágrimas deslizassem com vigor como reação à simples menção do nome da suave pintora.

Dias atrás - em qualquer dia desses que nos embotam o espírito - um sujeito da periferia adquiriu um carro muito acima de suas possibilidades, graças a um endividamento ad eternum. O tal carro era provido dos mais sofisticados sistemas eletrônicos e mecânicos, aliado a um conceito mercadológico rigorosamente planejado para atender as reais demandas do consumidor contemporâneo: embora carro por natureza, era esportivo e ecológico, traduzindo-se em um design que nos impressionava pela ligação umbilical com a natureza e um certo espírito de atleta.

Nesse mais um carro fabricado sob conceitos em voga, alardea-se por aí, que há um simbolismo inegável: mais do que o carro que transporta mais velozmente do que nossas próprias pernas, o que se busca é um símbolo de consumidor consciente: preocupado com a ecologia e com a sua saúde, ao mesmo tempo em que renega um carro que o ligaria à cafonice dos executivos com seus carrões de linhas clássicas.

Ontem, dia vinte e dois de setembro, há poucas horas atrás, no ato ocorrido em São Paulo, que defendia O Dia Mundial Sem Carro, manifestantes portando principalmente bicicletas, subiam e desciam ruas, ironizavam buzinas, suavam, xingavam e eram xingados, enquanto carros atolados no trânsito imóvel, eram ultrapassados com extrema facilidade.

Nesse dia de protesto, com objetivo de fazer do trânsito algo transitável, e da cidade algo menos cinza, repetiam os manifestantes para os jornalistas, os motoristas e os curiosos: é um ato simbólico contra a cultura do automóvel.

E foi aí que já massacrado por tantos simbolismos, por tantos símbolos de coisas irreais, irrealizadas, utópicas ou simplesmente mortas, que a revolta arrebatou meu espírito, como autêntico símbolo de um inconformismo funesto.

Que sejam símbolos ! Que se espalhem por todos os ventos todos os símbolos !

Que Lula não seja operário, nem seu governo um governo de e para operários e miseráveis.

Que os manifestantes se dispersem após o fim das manifestações, após serem devidamente fotografados, filmados, entrevistados, martirizados e auto-expiados. Que a política morra após o fim de cada evento globalizado e midiático.

Que o amor já tenha sido trocado, dilacerado, amaldiçoado ou simplesmente esquecido.

Que o carro seja simplesmente carro, ainda que o seu proprietário seja um débil "ecológico e esportista" que mal consegue subir a própria rua sem quase infartar, ou que ciclistas sejam símbolo de mundos irrealizáveis.

O fato é que estou farto dos simbolismos.
Hoje quero apenas as concretudes.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Levante-se !

Convicto, caminhe em direção ao espelho mais próximo, arregale os olhos ao limite do repuxar da pele, faça isso como se quisesse rasgá-la de uma só vez, como se toda e qualquer camada que impede a visão sobre si mesmo devesse ser definitivamente exterminada.

Olhe para si sem dó e sem complacência. Não ! Não desvie o olhar do espelho: essa imagem refletida nada mais é do que tudo aquilo que se mostra e que resplandece quando se está sob a luz.

Ouse arrancar sua pele. Arranque-a com a fúria de quem arranca de si mesmo uma infindável coleção de abelhas que cobre um corpo atacado por enxame.

Não tema qualquer vexame dessa vez: seria você capaz de arrancar todos os adereços, todas as roupas, todas as tatuagens, todas as cicatrizes, todas as marcas com que se camufla o que escondemos sob um peito dilacerado ?

Desvencilhe-se de tudo e de todos. Afaste de si visões ideológicas solidamente construídas sobre quaisquer coisas. Mande à merda concepções religiosas sobre os fatos e sobre os ódios. Enxergue os amores como vãs tentativas de se subtrair a si mesmo.

Ó! Por favor ! Faça uma demolição brutal sobre tudo aquilo que carrega sobre os ombros. Nesse momento já não importa mais a sua ascendência, extermine qualquer descendência e não faça pouco caso de jogar pelos ares absolutamente tudo que lhe desvie de si mesmo.

Inspire-se levemente em Descartes: com ímpeto violento, remova não os tijolos do edifício, mas sim a própria estrutura que o sustenta, até vê-lo desabar agradavelmente perante seus olhos.

Você já não precisa mais do cartesianismo agora: aniquile-o igualmente !

Jogue no lixo quaisquer preferências: seus romances favoritos não passam de jogos de encenação sobre vidas que não existem. As músicas e os ritmos que já lhe fizeram sentido terão o mesmo destino, reminiscências que são de algo inexistente.

Acabe com qualquer orgulho sobre qualquer trabalho. Seja você burguês, comerciante, liberal, professor ou estudante. Banqueiros e bancários unir-se-ão sob a mesma bandeira. Rasguemos, pois, os diplomas e as habilitações que pesam sobre nossas cabeças outorgando-nos poderes que apenas turvam quaisquer tentativas de nos enxergarmos com alguma nitidez.

Agora, já desprovido das camadas e artifícios diversos, livre de pessoas e de pensamentos que não lhe pertencem, liberto das amizades e das paixões, com olhar límpido não hesite em se questionar:

O que lhe sobra e o que efetivamente é você quando liberto e desprovido de todas essas camadas ?

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

inferno

A, B e C, são elementos que fazem parte de sua vida, sendo objetos de pensamentos, preocupações, atos e conversas cotidianas. Para o único fim de compreensão, não importa aqui se tais elementos se referem a pessoas, grupos ou lugares.

Quando está no A, ou quando está entre os A, embora sinta-se à vontade, sente constantemente um leve desconforto e estranho sentimento de estar fora de lugar. Nesses momentos, sempre pensa que, caso estivesse em B, ou caso estivesse rodeado pelos B, certamente sentiria-se mais compreendido e realizado. "Aí sim eu estaria entre os meus", pensava satisfeito.

O fato de que mesmo quando se encontrava em ou entre os B, ainda assim não encontrava a satisfação esperada, era algo extremamente incômodo e sobre o qual relutava terminantemente em refletir com honestidade.

Nessas situações, o desejo de estar novamente em A, ou ainda, a intuição de que se não estivesse ali agora, mas se estivesse lá com os C no exato momento em que lhe invadia o desconcerto ante aos olhares perscrutradores dos B, dominavam-lhe com fúria suas emoções descontroladas.

Se a salvação, enfim, era estar em C, ou mesmo que o salvar-se fosse estar mergulhado nas relações com os C, era absolutamente inadmissível que sentisse - como de fato sentia - aquele vazio profundo que preencheria um abismo, no exato momento em que nada além ou aquém de e dos C estava diante de si.

Quando isso lhe ocorria, logo retornava também o desejo de estar em B, sem deixar de lhe ser claro, no entanto, de que mesmo quando os A estavam ao seu redor, também os C se faziam necessários mesmo encontrando-se ausentes.

Foi então na contradição do infindável ciclo de satisfação irrealizada, incompleta e incontrolável: serpente que devora infinitamente a si mesmo, que descobriu o inferno.