Anos atrás, quando Lula finalmente chegou à presidência do Brasil, ecoava incessantemente entre os mais diversos setores da esquerda: um torneiro-mecânico, de origem pobre e nordestino, alcançou o mais alto posto político do país, pouco mais de dez anos após o enterro definitivo da ditadura militar brasileira.
Nesse acontecimento histórico da política brasileira, dizia-se - ou ainda se diz - que havia um simbolismo inegável: um operário era o presidente do Brasil.
Tambem há anos atrás, quando nos reuniamos por meses a fio, tentando um mínimo de coesão entre grupos políticos de tendências, princípios e objetivos tão diversos, como ecologistas, anarquistas, comunistas, idealistas, estudantes, independentes, rockeiros, metafísicos, céticos etc, tentando organizar uma grande manifestação "anti-globalização", a ser reproduzida simultaneamente em diversos países do mundo, alcançávamos algum sucesso nesse intento: no dia da manifestação, a Av. Paulista ou o centro velho da cidade de São Paulo, era parado, havia visibilidade, cobertura da imprensa e violência da polícia.
Nesse acontecimento histórico da esquerda não institucional brasileira, dizia-se - ou ainda se diz - que havia um simbolismo inegável: a juventude, sobretudo, mostrava publicamente que a globalização não era unanimidade no pensar político, e que globalização econômica não se traduzia em justiça, igualdade e vida digna em nível global.
Há meses atrás, um grande amigo meu me convidou para visitá-lo em sua casa. Ao cumprir minha promessa e efetivar a visita, entre conversas e bebidas agradáveis, foi-me mostrado um pequeno quadro pintado por sua ex-companheira. No quadro, havia uma delicada pintura circular feita a tinta nanquim, na qual dois traços suaves e arredondados, separados em seu início, se espalhavam pelos espaços em branco da tela, para então se unirem agradavelmente no topo da mesma, formando um único e grosso lance de tinta.
Nessa pequena e despretensiosa pintura realizada pela ex-companheira de meu amigo, dizia-me este - e ainda me diz - que havia um simbolismo inegável: o amor já enterrado, já passado, já morto, ainda se encontrava incrivelmente vivo pela interferência do símbolo que ela havia construído para o sentimento que nutriam entre si, ainda que lágrimas deslizassem com vigor como reação à simples menção do nome da suave pintora.
Dias atrás - em qualquer dia desses que nos embotam o espírito - um sujeito da periferia adquiriu um carro muito acima de suas possibilidades, graças a um endividamento
ad eternum. O tal carro era provido dos mais sofisticados sistemas eletrônicos e mecânicos, aliado a um conceito mercadológico rigorosamente planejado para atender as reais demandas do consumidor contemporâneo: embora carro por natureza, era esportivo e ecológico, traduzindo-se em um
design que nos impressionava pela ligação umbilical com a natureza e um certo espírito de atleta.
Nesse mais um carro fabricado sob conceitos em voga, alardea-se por aí, que há um simbolismo inegável: mais do que o carro que transporta mais velozmente do que nossas próprias pernas, o que se busca é um símbolo de consumidor consciente: preocupado com a ecologia e com a sua saúde, ao mesmo tempo em que renega um carro que o ligaria à cafonice dos executivos com seus carrões de linhas clássicas.
Ontem, dia vinte e dois de setembro, há poucas horas atrás, no ato ocorrido em São Paulo, que defendia
O Dia Mundial Sem Carro, manifestantes portando principalmente bicicletas, subiam e desciam ruas, ironizavam buzinas, suavam, xingavam e eram xingados, enquanto carros atolados no trânsito imóvel, eram ultrapassados com extrema facilidade.
Nesse dia de protesto, com objetivo de fazer do trânsito algo transitável, e da cidade algo menos cinza, repetiam os manifestantes para os jornalistas, os motoristas e os curiosos: é um ato simbólico contra a cultura do automóvel.
E foi aí que já massacrado por tantos simbolismos, por tantos símbolos de coisas irreais, irrealizadas, utópicas ou simplesmente mortas, que a revolta arrebatou meu espírito, como autêntico símbolo de um inconformismo funesto.
Que sejam símbolos ! Que se espalhem por todos os ventos todos os símbolos !
Que Lula não seja operário, nem seu governo um governo de e para operários e miseráveis.
Que os manifestantes se dispersem após o fim das manifestações, após serem devidamente fotografados, filmados, entrevistados, martirizados e auto-expiados. Que a política morra após o fim de cada evento globalizado e midiático.
Que o amor já tenha sido trocado, dilacerado, amaldiçoado ou simplesmente esquecido.
Que o carro seja simplesmente carro, ainda que o seu proprietário seja um débil "ecológico e esportista" que mal consegue subir a própria rua sem quase infartar, ou que ciclistas sejam símbolo de mundos irrealizáveis.
O fato é que estou farto dos simbolismos.
Hoje quero apenas as concretudes.