sábado, 24 de maio de 2008

Encontraram-se e resolveram entrar em um pequeno café da rua estreita. Dentro do café, uma cópia grosseira da escultura de Afrodite, do Louvre, os observava:

XX: "...... e então quer dizer que nada mais importa ! "
XY: "Foda pensar assim, né ? Mas é apenas sinceridade. Nada mais importa."
XX: "E logicamente seus sonhos já não valem um centavo sequer. Seus projetos podem ser realizados agora ou talvez nunca. E você ainda me diz que não muda nada fazer agora ou não fazer."
XY: "Sim. No fundo mesmo, não muda nada."
XX: "Ou seja, você está no foda-se total !"
XY: "Não me orgulho em dizer que sim. Mas eu quero que tudo se foda mesmo."
XX: "Ainda se lembra de uma carta que escreveu para si mesmo, quando você tinha 17 anos ? Eu nunca a li, você nunca a mostrou a ninguém, mas não sei porque, um dia me contou com algum orgulho que tinha escrito uma carta para si mesmo."
XY: "Fiz isso de verdade, eu tinha 17 anos e era um estúpido."
XX: "Nunca me disse com clareza o que é que você escreveu para si mesmo..."
XY: "Bem que poderia ter sido uma carta com alguma frase sábia, algum alerta que eu poderia dar para mim mesmo. Isso até me daria algum orgulho, sabia ? Eu teria escrito talvez uma coisa simples, algo assim: "nada do que você pensa hoje vai sobreviver. Tudo vai morrer". Eu realmente acharia muito foda ter me dado um alerta desse há 14 anos atrás."
XX: "Você é esquisito...."
XY: "...."
XX: -"Ainda não me disse o que é que você escreveu nessa carta....."
XY: "Pelo menos eu já te disse o que eu poderia ter escrito, e o que teria me provocado orgulho."
XX: "Como você não escreveu, nada vale."
XY:"Se quer mesmo saber, se isso vai te dar a idéia de que poderá entender melhor minha cabeça de hoje, então eu te conto. Nessa maldita carta que escrevi para mim mesmo, eu usei uma caneta para envergonhar o papel. Eu escrevi alguns princípios que deveria obedecer por toda a minha vida. Lembro que o último deles era que eu não poderia jamais desobedecer meus princípios."
XX ri sarcasticamente. Faz cara de surpresa, mas logo em seguida reassume sua feição inquisidora:
XX: "Um merdinha de 17 anos que escreveu os princípios para obedecer por toda a vida, e ainda por cima escreveu que não poderia desobedecer nunca....... Você se achava muito inteligente e esperto, não é ?"
XY: "Me diziam que eu era inteligente e esperto, e eu gostava de acreditar nisso. Falavam ainda que eu era bonito."
XX: "Você ainda é bonito. Mas sua beleza é inofensiva. Mas isso também pouco importa agora."
XY: "É que eu também gostava de acreditar nisso...."
XX: "Não importa mais. O que eu quero entender mesmo é como você escreveu sobre princípios que te comprometeriam por toda a vida, e agora vive me dizendo que quer que tudo se foda."
XY: "Eu já te disse que era um estúpido nessa época, e acho que todo mundo era estúpido como eu também. Diziam que eu era esperto, veja só !"
XX: "Como você explica a transformação de um jovem estúpido e cheio de belos princípios para o que você é hoje, um cara cujo prazer é se difamar e se rebaixar para qualquer um que esteja disposto a te ouvir ?"
XY: "Eu também não sei como aconteceu. Sei que teve um certo dia que eu me dei conta que não me importava com mais nada. Eu fazia um monte de coisas, sozinho ou com um monte de gente que eu achava parecida comigo. De repente, eu vi que poderia deixar de fazer todas essas coisas, que poderia deixar de ver todas essas pessoas, e que a minha vida seria rigorosamente a mesma. Nada mudaria !"
XX: "Isso é mentira. Você está mentindo feio. É impossível que qualquer pessoa deixe de fazer tudo que faz na vida, de um dia para o outro, e ainda por cima ache que a vida vai continuar igualzinha...."
XY: "Eu sei que é difícil acreditar. Nem mesmo eu ainda consigo entender isso. Mas sabe quando você gosta muito de uma comida, e aí você acorda num certo dia, pensa nessa comida, e ela te dá tanto enjôo que você passa a ter certeza que nunca mais vai comê-la ? Foi mais ou menos assim comigo. Eu acordei e tive a certeza que nada mais me importava. Nem ninguém."
Com clara impaciência, XX esperou XY terminar de falar, para de bate pronto responder:
XX: "Cara, você é muito esquisito. Eu não quero encerrar a nossa conversa, só por isso vou dizer que eu entendo o que você disse. Mas não me peça pra achar que isso é normal, que todo mundo enjoa de uma comida e depois nunca mais a come. Falar de enjoar das coisas que faz e das pessoas ainda.... Mas tudo bem. Eu entendi o que você quis dizer."
XY: "Foi você que perguntou. Eu só disse isso porque me perguntou sobre a carta. Eu também não acho que vale a pena ficar conversando sobre isso. Mas já que comecei, vou deixar você ainda mais fudida: foi só depois desse dia que enjoei de tudo, que resolvi remexer nas minhas coisas até encontrar os meus princípios de moleque."
XX: "Se você tiver o mínimo de seriedade ainda, deve ter se sentido com vergonha da sua carta. Você a leu ? "
XY: "Li...."
XX: "E como ficou depois de ler ? Chorou ? Sentiu raiva ?"
XY: "Eu li e a palavra estúpido ficou martelando sem parar na minha cabeça. Mas isso não me deu raiva, nem choro, nem vergonha, nem nada. Eu só li e achei que eu poderia não ter escrito aquela carta, que não mudaria nada."
XX: "Porra ! Lá vem você de novo com essa história de que fazer ou não fazer dá na mesma ! Acho que você tá ficando louco mesmo. Meu, por mais que você odeie isso,você escreveu a porra da carta, se não tivesse escrito a gente nem estaria sentado aqui falando sobre isso. É tudo tão óbvio que me irrita ter que falar isso."
XY: "Todas as coisas óbvias te irritam....sempre te irritaram...."
XX: "E você deve pensar que essas suas generalizações sobre mim, sobre como eu penso, te dão um ar de sabedoria....."
XY: "Sabe que de tudo que eu li na carta, uma coisa me chamou a atenção ? Foi o princípio número sete, era o princípio que falava sobre "eu terei que aprender a ser feliz sozinho". Acredita que ele me chamou mais a atenção do que o terceiro princípio, que dizia que eu deveria sempre estar envolvido em lutas e atividades políticas ? Acho que eu tinha um medo enorme de me emburguesar..."
XX: "Isso é um pouco patético mesmo. Ainda mais quando a gente lembra que seus amigos, ou melhor, seus companheiros das tais lutas políticas, são todos uns bons burgueses. Aliás, você mesmo é assim..."
XY: "Eu sou burguês e isso no fundo ainda me desagrada também. Mas como agora nada mais importa, foda-se minha burguesia também."
XX: "Você arrumou um belo salvo-conduto para sua vida. Age agora como todo mundo, mesmo os que você desprezava até pouco tempo atrás. O seu foda-se a tudo é só uma forma áspera de se sentir confortável, assim como um bom burguês gosta de estar confortável em sua poltrona na sala de estar."

XY: "Eu só não finjo mais nada. Não tenho mais nenhum papel a interpretar. Meu personagem já morreu, aliás, hoje em dia o que faz sucesso é o reality show, não é preciso interpretar mais nada."

XX: "Mesmo assim, volto a seus princípios de ser feliz sozinho e estar sempre envolvido com política. Hmmm..... acho que você não era assim tão estúpido, como diz. Pensava em coisas que gente da sua idade nem pensava, tenho certeza. Eu mesmo, não pensava em nada disso. Nessa idade eu só pensava em sexo, em transar, eu via possibilidades de trepar em todos os lugares que ia."

XY: "Sexo não apareceu em nenhum princípio meu. Mas também né, eu tinha que ser feliz sozinho, não faria muito sentido..."

XX: "Nada faz sentido nisso tudo, parece. Nem sua cabeça à época, nem a de agora. Nem o princípio número três, nem o número sete, nem nenhum outro que eu nem conheço, mas já posso imaginar como são... Você me amava há até um tempo atrás, pelo menos me dizia isso. Já aqui desobedeceu ao último princípio e ao sétimo, pois você deveria ser sozinho e não foi. "

XY: "Mas agora eu sou. Mas não tem nada a ver com esses princípios..."

XX:"E mentiu de novo para si mesmo, pois largou tudo ligado à política que você fazia. Até as pessoas que você gostava desse meio, você abandonou. E olha que tinha uma lá que era louca para ficar com você...isso me irritava !"

XY: "Eu menti em tudo. Ou em quase tudo. Acho que só não menti quando disse que eu te amava. Eu achava mesmo que poderia ser feliz com você."

XX: "Não tivesse sido tão canalha comigo, acho que você poderia mesmo... Uma trepadinha só, né ? Não teria mal algum..... Mas quando me contou, não perdi a oportunidade de acabar com você. Hoje vejo que você me foi muito conveniente."

XY: "Devo ter feito isso para enfim poder ficar sozinho."

XX: "Não me importa mais porque fez. O que eu sei é que toda essa história sua de sumir do mapa, de não falar com mais ninguém, de não fazer mais nada, essa coisa de carta de princípios, de ser feliz sozinho agora também...meu Deus.... Não te dou um ou dois meses para se humilhar. Vai mendigar companhia de qualquer pessoa, mesmo que seja da pior pessoa do mundo."

XY: "Eu quero ser feliz sozinho. Só isso."

XX: "Sempre achei que você se atribui mais importância do que realmente tem. Agora tenho a impressão muito forte que você se enxerga como Deus. Não precisa de nada e de ninguém."

XY: "Acho que tenho é inveja de Deus. Ele é que é feliz."

XX: "Não tem idéia de como é ridículo te ouvir falar essa frase...."

XY: "Mas é o que eu acho. Sabe que Deus é fundamento de si mesmo ? Ele se basta. Ele se cria e cria tudo. Só que tudo tem fundamento nele mesmo, que é Deus, mas ele mesmo não tem fundamento em nada que é de fora, só nele. "

XX: "Então se Deus quer ser feliz ele pode, afinal a felicidade ele pode criar também. Tá dentro dele."

XY: "E não precisa de mais nada para isso, só dele mesmo."

XX: "E pelo jeito, esse agora é o seu projeto, ser feliz como Deus. Com a pequena diferença que você não pode criar nada, aliás, mal consegue pagar seu aluguel...."

XY: "Você acha absurdo, eu sei. Mas não quero fazer como Deus faz, só quero ser feliz sem precisar de você, de qualquer outra pessoa, coisa ou acontecimento. Só quero depender de mim mesmo, isso não parece tão absurdo."

XX: "Não tão absurdo quanto eu estar aqui te ouvindo, isso você tem razão."

XY: "No fim das contas, eu te concedo o benefício da dúvida. Eu sei que você deve estar rindo por dentro agora. Falo quero ser Deus, que vou ser feliz só comigo mesmo, que nada mais me importa. Tenho certeza que você deve estar pensando agora que sou um idiota, pois sou contraditório, desejo que tudo se foda e ao mesmo tempo excluo do tudo a minha felicidade. Pois digo que quero ser feliz ainda, mas sozinho."

XX:"Você só me parece um garotinho em crise. Nada mais. Mas é difícil te ver como um garotinho ao mesmo tempo que vejo seus crescentes cabelos brancos, ao mesmo tempo em que vejo seus dentes amarelados por tanto cigarro que já fumou."

XY: "Você tenta fazer eu me sentir ridículo. Mesmo seus olhos tentando me congelar agora, me petrificar em um simples boneco de um garotinho triste. Mas tenho certeza que vou conseguir o que quero. Não é muito na verdade, só quero que tudo que eu precise esteja dentro de mim."

XX: "Cansei da sua conversa. Cansei de tudo que me falou. Você agora tem uma falsa inteligência, tem um discurso bonito para justificar nada mais do que um grande egoísmo."

XY: "É possível. Mesmo assim vou tentar. Mas sabe....eu continuo gostando de você.... Eu não queria que a gent...

Com extrema virulência, XX interrompe:

XX: "Vai se fuder ! Cale essa boca !"

XY: "..."

Nesse momento a cópia da estátua de Afrodite se enfeiou ainda mais. Seu gesso poroso se esfarelava, provocando pequenos montes de pó branco à sua frente.

Levantaram-se, deixando o café para trás. Sem qualquer gesto que indicasse rancor ou tristeza, seguiram em direções diferentes.

Meses depois, XX avistou XY passeando de mãos dadas com uma mulher mais velha do que ele, cara de inteligente. Compravam um saco de pipoca, enquanto riam ao contar as moedas.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

sofrimento sereno














Laocoonte, no Museu do Vaticano, Roma. Fotógrafo: eu mesmo ! que felicidade....


A história de Laocoonte é a história do homem que sofre. Sacerdote do deus Apolo, Laocoonte foi morto, em conjunto com seus dois filhos, pela serpente enviada pelo deus Poseidon, em episódio narrado na Ilíada, de Homero.
Obra de importância fundamental na arte grega, foi por meio dela que J.J. Winckelmann, na clássica obra "Reflexões sobre Arte Antiga", definiu o ápice do processo de perfeição e beleza desenvolvido pelos gregos nas belas artes, seja sob o ponto de vista da perfeição e harmonia de suas formas, seja pelo que carrega em seu simbolismo mítico.
De fato, na cultura grega clássica, a representação artística dos deuses desempenhou importante elemento de expressão do meio social do qual surgiram. Diferentemente do deus da tradição judaico-cristã, bem como dos mortais que foram erigidos posteriormente à condição de santos, a grande lista de deuses e semi-deuses gregos se notabilizava pela intensa reprodução dos mais puros sentimentos humanos, intensificado pelos poderes e pelas glórias emanadas do Olimpo.
Assim é que a líada, de Homero, antes mesmo de ser uma narrativa épica sobre a Guerra de Tróia, travada entre aqueus e troianos, pode ser definida também como a história de uma guerra movida pelas mais simples e cotidianas paixões humanas: o amor, o desejo de vingança, a busca pela glória e pela honra, as preferências e conspirações entre deuses para favorecer um ou outro homem ou lado do conflito, a impotência e a fraqueza humanas.
Nenhum dos deuses gregos estava imune a tais sentimentos tão tragicamente humanos, mas ao contrário, deixavam muitas vezes dominarem-se pelas paixões, para em seguida agirem, com todo seu poder e prestígio, na intensificação ou na resolução da guerra.
É na simples humanidade dos sentimentos demonstrados pelos deuses olímpicos que residia sua legitimidade e força entre os gregos, lógica essa que se encontra presente - ainda que de forma bastante diferenciada e já distante de uma humanização- em grande parte das mitologias atuais, inclusive a cristã católica.
No entanto, embora haja a presença desse traço humano no perfil psicológico dos deuses gregos, é igualmente certo que a condição divina outorga uma diferença vital na exteriorização das emoções e das paixões.
Essa diferença vital se manifesta na contraposição que pode haver entre um sofrimento suportado por um homem comum, e aquele que é representado pelos gregos, sobretudo em relação aos deuses.
Há, por exemplo, formas e formas de se expressar um sofrimento, em uma matiz que pode oscilar entre a histeria e a soberania. O sentimento da dor pode provocar como forma de alívio, um grito agudo ou um gemido grave, saído de lábios retorcidos pela dor ou que ainda conseguem - mesmo em estado de dor - preservar uma superioridade em relação a ela.
Para Winckelmann, a escultura de Laocoonte - mesmo não se tratando da representação de um deus - apresenta com perfeição tais características, das quais destaco em especial a questão chamada de sofrimento sereno.
É possível sofrer com serenidade ? A dor pode ser compatibilizada com uma atitude psicológica que nos afaste de uma posição de submissão em relação a ela ?
Obviamente a obra de Winckelmann não se propõe a responder a tais questões, mas coloca em tamanha evidência a soberania e a serenidade com que Laocoonte sofre em seu momento de morte, agravado pela morte iminente de seus dois filhos que o acompanham, que a indagação - embora extrapole a análise estética - se coloca como uma questão atual e cotidiana para nossas próprias vidas.
Laocoonte é homem e sofre. É picado por uma serpente que, fatalmente, irá também matar seus dois filhos. Laocoonte sofre com soberania e serenidade, na medida em que se coloca em posição superior à sua dor, e sua expressão facial indica claramente isso: há dor, mas há dor sofrida com serenidade.
Sua expressão indica a morte iminente, mas não há traço de histeria na manifestação do sofrimento. Seus lábios mostram que a dor lhe provoca gemidos. Não provoca gritos ou histeria. Com algum exercício de imaginação e entrega à apreciação da escultura, pode-se "ouvir" um gemido grave, prolongado e algo duradouro.
Seu corpo contraído indica a luta contra a morte provocada pela serpente. Não há um corpo desfalecido e entregue, mas sim um corpo no auge de sua forma, com os músculos claramente demonstrando a própria soberania do corpo em relação à dor.
O momento apresentado na escultura é o ápice da dor. Não o antes e não o depois. Mas sim o cume do sofrimento que coincide com a picada da serpente em sua cintura.
A partir desta exata cena, podemos visualizar o que se passou antes, com o ataque da serpente, e podemos visualizar também o que vem depois: a morte de Laocoonte e seus dois filhos.
Para Winckelmann, em defesa apaixonada da arte grega, em especial da escultura, este foi o ponto máximo e mais belo atingido pelos homens nas artes. Laocoonte é a própria representação do limite a que pode chegar a arte humana, sendo que toda a arte produzida após os gregos, não passa de arte decadente, na medida em que progressivamente se afastou do ideal helênico.
Tomada de posição radical, sem dúvida, mas que Winckelmann defende com tamanha ardor e paixão, que é muito tentador se render à sua conclusão óbvia: a arte só voltará a significar algum valor estético ao homem, quando este reconhecer que nada mais lhe resta a não ser efetuar o exercício da mimesis, ou seja, desenvolver as artes a partir do conceito grego, imitando-a, sob pena de observarmos apenas sua a progressiva decadência.
Nesse ponto, retomo a indagação acima. É possível sofrer com serenidade ? A dor pode ser compatibilizada com uma atitude psicológica que nos afaste de uma posição de submissão em relação a ela ?
Não é preciso concordar, evidentemente, com a polêmica e apaixonada defesa da arte grega clássica de Winckelmann, tampouco enxergar a arte posterior como pura decadência.
A questão que se coloca, no fundo, é se podemos a partir dessa análise estética de Laocoonte, estender arbitrariamente, de alguma forma, a sua análise, para cogitarmos acerca da possibilidade e da aplicabilidade, em nossa própria vida, do conceito de sofrimento soberano.
Que a dor e o sofrimento são inevitáveis, isso faz parte de um conhecimento evidente de quem vive. Mas podemos sofrer estando acima da dor ? Podemos submetê-la a nós mesmos ?
Laocoonte segue sendo um enigma particular para mim, ao mesmo tempo que um ideal, uma inspiração para além do campo estético, daquilo que eu mesmo gostaria de alcançar, no que se refere à simbologia da relação entre dor e sofrimento, fenômenos inevitavelmente humanos.

domingo, 18 de maio de 2008

Aikido

Yudanshakai é o treino que reúne praticantes de uma determinada arte marcial com um nível mínimo de graduação, tempo de treinamento e experiência.

Nos yudanshakais de Aikido, realizados mensalmente na Academia Central de Kawai Shihan, há normalmente um grande número de pessoas dos mais variados tipos: mulheres e homens grandes, pequenos, fortes, altos, baixos, provenientes de outros estados brasileiros e às vezes de outros países. Idades iguais ou desiguais, superiores e inferiores.
Pessoas que já treinam Aikido há trinta ou mais anos, pessoas que treinam pelo mesmo número de anos que tenho de vida, pessoas que começaram no Aikido na idade em que a maioria já desistiu de quaisquer planos e também pessoas com muito menos anos de idade, mas com uma experiência e um conhecimento muito acima.
Jovens fortes que vêem no Aikido seus corpos se desenvolverem e seus músculos se alongarem e crescerem, contrapondo-se aos senhores que vêem seus corpos não se definharem com o passar dos anos, que perdem progressivamente a força física enquanto ganham em desenvolvimento de princípios basilares do Aikido: o relaxamento do corpo, a força da respiração, a não oposição de força e a harmonia a uma energia que pode vir em qualquer sentido.
A participação regular nos yudanshakais tem oferecido a oportunidade única de me defrontar com uma série de fatos, pessoas, sentimentos, reações e projetos.
O dogui de tecido espesso, a faixa que envolve a cintura e o hakama que confere uma certa sobriedade ao praticante de Aikido: todos eles eu ostentava hoje pela manhã, enquanto o suor escorria pelo rosto, sentindo a leve brisa quente provocada pelo corpo arremessado para múltiplas direções.
No entanto, nenhum deles pôde evitar que me sentisse, por mais uma vez, desnudado em meu ser, escancarando as fragilidades, as inseguranças e os medos que as roupas são incapazes de esconder.
As técnicas demonstradas uma a uma, cada qual envolvendo um certo nível de aparência de facilidade na sua execução, conquanto as aparências rapidamente se dissipassem na primeira tentativa de realização da mesma, na medida em que sentia os braços se apequenarem, a mente se estreitando, o peso do corpo e a máscara da facilidade se esvaindo, revelando a complexidade contida em cada movimento e em cada fração em que este pode ser reduzido.
A respiração mais curta indica, os braços tensos indicam, o olhar fugidio que não se confronta com os do parceiro igualmente indicam: não há nudez psicológica em estado mais bruto do que aquela que sinto nestas situações. Uma fragilidade tão gritante que seria de extrema insensatez não aproveitá-la para meu próprio desenvolvimento, para meu próprio benefício.
Não foi à toa que Morihei Ueshiba, fundador do Aikido, enxergou este como uma forma de "vencer a si mesmo", pois para além do domínio e da perfeição das técnicas marciais, o Aikido propicia uma chance inigualável de conhecer e tentar superar as próprias inseguranças, os medos mais secretos e, sobretudo, de nos defrontar com o "eu desnudado", que nem mesmo as mais espessas roupas podem camuflar.
Uma certa dose de auto-crítica, humildade e capacidade de observar aos outros e a si mesmo, pode nos revelar muito dessa infindável tarefa que á lapidar a si mesmo. No entanto, a percepção e a clareza das imperfeições a serem trabalhadas, é facilitada em muito quando nos encontramos rodeado de pessoas que, de bom grado e sem que possam ganhar qualquer coisa além da gratidão, nos alertam e nos propiciam a oportunidade de tentar ser alguém melhor.
Ao Aikido, a gratidão por me colocar diante de mim mesmo.
Aos amigos, a gratidão e a felicidade de nos encontrarmos juntos, cada qual em sua luta.