sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Parte 1

Arnaldo não duvidou de si mesmo ao ver sua imagem refletida no espelho. Tanto sofrimento havia decerto tirado um pouco de sua jovialidade e muito de sua crença em uma ordem natural das coisas, das pessoas e do mundo.
Mesmo assim, como que desafiando a sucessão natural dos fatos, ali estava ele, olhando-se no espelho e se achando um rapaz ligeiramente atraente.
Dobrou as mangas da camisa até acima dos cotovelos, de tal forma que seus braços naturalmente fortes, traço inegável de uma masculinidade não escolhida, ficassem visíveis para aquela sujeitinha que iria vê-lo após tantos meses de ausência se que fazia mais presença do que a própria presença em pessoa.

Estivessem tais coisas submetidas à sua pequena tirania, Arnaldo nao hesitaria em tornar visível outra coisa. Para sermos ainda mais honestos com essa miserável figura, era a sua descrença em tudo que um dia havia assumido uma feição de ordem, que deveria alcançar os altos graus de visibilidade. Não os seus malditos braços !

De toda forma, conseguiu ainda pensar que seus braços poderiam estar tatuados, forma comum de se mostrar coisas a terceiros. Ao menos naquela noite, desejara isso. E ainda que isso fosse absurda contradição ao seu perene horror às coisas definitivas de qualquer espécie. Para ele, riscos imutáveis na pele assumiam a forma de verdadeiro desespero em forma de ânsia.

Ainda assim, desejara que em sua pele estivesse escrito alguma coisa grandiosa, uma frase em latim, por exemplo. Coisa fina mesmo, visto que palavras concisas mas de significado incontestável expressariam toda a dor - seguida da superação - a que fora submetido desde a separação.

Às dez da noite, Arnaldo sacou o telefone celular do bolso de sua calça de linho cuidadosamente guardada durante toda a longa semana, e constatou: "É chegada a hora". Um frio absurdamente gélido percorreu-lhe toda a espinha indo repousar apenas em seu ventre, provocando-lhe um sem número de contrações involuntárias.

Mesmo assim, respirou fundo e caminhou apressadamente até o bar. Almejava realmente chegar antes dela, para que pudesse se sentar sozinho na mesa, pedir um conhaque com limão em homenagem à sua própria juventude e a aguardar.

Ao chegar no bar, ela pagaria por tudo ! Tendo de caminhar uma considerável distância da porta de entrada até a mesa em que se encontrava, ela teria tempo suficiente para ver que apesar de tudo, ele ali estava, altivo, forte, envelhecido mas ainda ostentando alguma dignidade.

Tinha absoluta certeza que ela pensaria imediatamente ao vê-lo sentado no bar: "ele ainda é belo. Mas sua beleza já está gasta". Mas isso pouco importava.
Outra coisa que ela pensaria, mas nesse ponto Arnaldo cultivava sérias dúvidas, era a de que a tola se arrependeria de tudo ! Ora só ! O momento perfeito seria o arrependimento sentido apenas na visão dela sobre si mesmo sentado melancólica-altivamente no bar. Se não fosse antes das palavras serem ditas pelos dois, não seria nunca !

Arnaldo havia efetivamente trabalhado para isso acontecer.

Nesse meio tempo em que se tornaram estranhos, ele havia se instruido. Tal como acontecera com inúmeros presos que se aproveitaram da reclusão para se dedicarem às leituras religiosas, políticas ou filosóficas, emergindo das grades muitas vezes como líderes de massa, o fato é que Arnaldo usara seu exílio forçado para crescer: em questão de meses se habituara com o universo dos russos, dos franceses e dos latino-americanos. Aprendeu a ler poesia com alguma maestria e até mesmo chegou a seduzir deliberadamente uma ninfeta ao recitar um fragmento de verso que havia decorado, enquanto a massageava nas costas.

Se aquela noite era uma guerra, se aquele reencontro colocaria frente a frente antigos aliados que agora se debatiam no campo de batalha, não havia dúvida alguma que Arnaldo se sentia confiante por seus meses de árduo treinamento.

Pois então, chegada a hora como havia constatado, Arnaldo se lembrou de que um item importante havia sido vergonhosamente esquecido: os cigarros ! Sem tatuagens nos braços ainda vai. Não se tatua assim da noite pro dia ! Ainda mais alguma frase em latim, coisa mais morta do que mulheres sensíveis à inteligência de um homem. Mas os cigarros eram imprescindíveis.

Porém, com a ausência fundamental dos cigarros, esse novo item que ela desconhecia, Arnaldo consultou seu relógio telefone e teve a certeza de que teria tempo suficiente para comprá-los na banca de jornais postada ali perto, na esquina da Rua Mersault com a Rua dos Amantes.
Levantou-se rapidamente e se pôs a caminhar com a convicção de um soldado em campanha, rumo a um prostíbulo qualquer de uma cidade invadida. Para Arnaldo, os cigarros não precisavam necessariamente serem belos nem fortes, poderiam ser daqueles do tipo suave, em que a nicotina desce afagando de carinhos a garganta.
De toda forma, ali estava Arnaldo, estacionado defronte à banca de jornais, com moedas na mão e um plano em pleno prosseguimento. Tudo rigorosamente se desenrolava como havia planejado: seus braços, seu discurso, a mesa escolhida no bar, o clima, o conhaque que beberia, os cigarros, tudo !
Nenhuma minúcia ficara fora de seu planejamento e sua natural aversão a ordens de todo o tipo encontrava ali seu único, poderoso e contraditório óbice: quando se tratava de armar alguma coisa para a sua própria vida, Arnaldo era tão meticuloso que poderia ser chamado de caxias.
Tanto é verdade que quando olhou para o lado e viu aquele sujeito propositadamente mal vestido, com uma atitude falsa de segurar uma garrafa numa mão e um revólver na outra, olhando com afinco para dentro da banca de jornais, pensou consigo mesmo: "Esse mendigo não deveria estar aqui. Pelo menos não desse jeito."
Mal terminou seu pensamento e um estampido de disparo do revólver empunhado pelo mendigo rompeu com os naturais ruidos da rua, alcançando até mesmo a pacata vida de Arnaldo, que viu tombar, com a cabeça sangrando, o dono da banca de jornais, que nesse momento ainda segurava o maço de cigarros de nicotina suave.
(continua)