quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O Célio

Célio passava sabão nos cabelos castanho escuros de modo que os mesmos pudessem ficar em pé indefinidamente. Inspirado em um suposto grupo de amigos que jamais me foi apresentado, Célio tinha apenas dois orgulhos: intitular-se como punk para aquele bando de garotos e garotas que era obrigado a ver diariamente - eu entre eles - e aterrorizar todas as meninas do colégio mediante técnica de inversão de pálpebras dos olhos, o que em questão de segundos provocava repulsa coletiva à sua pessoa.

Nada tinha a ver Célio com a minha vida de bom garoto. Ao menos naquela época eu era um menino que dormia rigorosamente às nove horas da noite, logo após o Jornal Nacional, e não pregava meus olhos sem que cumprisse o ritual noturno: eu e meu irmão rezávamos conduzidos pela missa particular de minha mãe, com as mãos em forma de concha voltadas para cima.

No dia seguinte, lá vinha ele: Célio. Corpo esquálido e desajeitado, rosto triangular e magro, boca na qual mal se percebiam os lábios tímidos. A figura dele remete à imagem de Sid Vicious, mas não há dúvida de que tal imagem se contamina de alguma romantização.

Com seus olhos oblíquos e atentos e suas conversas dissonantes de meu mundo, rapidamente Célio se tornou meu primeiro amigo repetente.

Estávamos na quarta série e ele havia repetido de ano. Sendo um ano mais velho do que todos nós e já com esse currículo diferenciado, Célio era - ainda que subrepticiamente - um certo líder de bando. Eu ? Não sei porque eu fui erigido a uma condição que se assemelhava a um secretário-geral: preparava o palco, chamava o público e também tinha meus momentos de brilho.

Não sei o que Célio e eu fizemos exatamente. Mas o fato é que essa amizade bandida me fazia bem.
As rezas noturnas à noite com minha mãe, passaram a servir de munição para as missas cômicas que eu celebrava diariamente perante meus colegas de escola. Falava em tom sacerdotal, apontava a cada um dos meus amigos e bradava "irmãaaaos".... como súplica a sua atenção.

Célio costumava encerrar essas missas com seu espetáculo particular de inversão de pálpebras. Nada a ver com manifestações demoníacas, mas tão somente porque eu já cansara a platéia com meu humor esforçado.

Jamais me esqueço de Célio. A gente não tinha nada a ver um com o outro, mas algo dentro de mim era despertado por aquele repetente.

Apesar disso, eu continuava sendo um bom garoto, disso não se duvide. Dividíamos a mesma sala, parceiros de carteira, coisa de ficar lado a lado mesmo, dividindo as borrachas perfumadas e compartilhando os apontadores de lápis em forma de capacete.

Mas foi numa aula do Prof. Jesuíno que nitidamente nossas naturezas se manifestaram de forma visceral e anunciaram que aquela amizade não prosseguiria além daquele ano.

Naquela aula eu só tinha uma preocupação: ganhar o livro O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry que seria dado pelo professor ao aluno com as melhores notas do bimestre. Eu era bom aluno e tinha boas notas - reflexo do militarismo estudantil de minha mãe - e tinha plena convicção de que o livro era absolutamente meu.

O Célio eu me lembro que mal sabia ler e estava se lixando para o livro, tanto é que ao ouvir minha revolta com a derrota na competição - o livro havia sido dado a um garoto de voz fina que a gente odiava - me olhou fixamente, fez desaparecer seus lábios já inexistentes com uma mordida e passou a cantar uma música muito conhecida na época, tempos de Rock in Rio, intercalando as frases da música com socos muito fortes na parede ao lado da carteira.

Desde aquele dia eu bem compreendi que era diferente de Célio.
Em casa eu chorei diante da perda do livro e me lembrava dos duros socos dados por ele contra a parede. Lembrei também que no futebol, Célio era rei naquilo que ninguém queria ser: goleiro. Não havia receio ! A cada bomba que vinha das nossas pernaças ele não saia da frente, se jogava contra a bola ao contrário de esperá-la vir em sua direção.

Socos na parede, hematomas no corpo, prazer naquilo que todos rejeitavam, falta de medo de boladas doloridas e inversão de pálpebras: esse era Célio, um verdadeiro masoquista.

Depois, ao fim do ano, a gente nem forçou nada. Célio repetiu novamente e saiu do colégio. Nunca mais o vi e nem tive qualquer tipo de notícia. Dali para a frente eu fiquei amigo de muita gente repetente, bem me lembro.

Essa lembrança de uma época única, o colégio, com todas as suas pequenas glórias e tragédias, permanece tão vívida em razão de sua naturalidade.
Nada tendo a ver um com o outro, Célio e eu tornamo-nos bons amigos por um ano. Sem forçar, sem preparar, sem se esforçar. Amigos, naturalmente.

Não é assim que acontecem as coisas boas da nossa vida ?

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

lógica elementar: 8 - 80 - 8

A gente sempre começa com um silogismo aristotélico:

Qualquer sujeito é tolo.
Eu sou sujeito.
Logo, eu sou um sujeito tolo.

O que torna válido um silogismo é que a conclusão deve obedecer as premissas, sob pena de ser um silogismo falso, como esse que segue abaixo:

O amor submete o homem.
Já a paixão o liberta.
Todo homem submetido
é um homem verdadeiramente idiota.

O desacordo da conclusão com as premissas, nesse caso, é que invalida o silogismo.

Ainda que as premissas sejam verdadeiras, tais como a submissão e a libertação provocadas pelo amor e pela paixão, delas não se segue necessariamente que todo homem submetido é verdadeiramente idiota.

E mais, há um acerto intrínseco na afirmação da idiotice do homem e na submissão do amor, mas como um não leva ao outro, então não vale o silogismo.

...

Em certas ocasiões a vida dá tapa na cara. Gostariamos mesmo de viver em meio a silogismos vários, com premissas facilmente manipuláveis e conclusões das mais saudáveis.

Endossaríamos mesmo assim os discursos exaltando as imprevisibilidades da vida, mas apenas naquilo que nos surpreende positivamente. Para o que nos provoca o mal, bastaria uma simples manipulação das causas para alteração da conclusão.

...

Pensava nisso tudo numa triste noite.

Um caminhão havia me atropelado e o motorista sequer parou para me prestar socorro. Sai das ferragens retorcidas assemelhadas a um polvo de mil braços a me prender no fundo do mar, até o momento em que daria a última, fatal e profunda inspiração.

Achando que era ar, respirei água e me propiciei a morte. Conclusão não válida.

A minha premissa era sair vivo das ferragens. Vivo. Cambaleante ferido sangrando mas corpo vivo.

Em uma só noite a gente varia. Mas que coisa terrível !

Um demônio apertou minha nuca como se quisesse esmagá-la entre seus dedos. Deitou sobre mim seu cobertor malévolo. Um corpo preso e pesado sustentando uma cabeça de mil quilos a vagar pela cidade maldita. Pensamentos obscuros me traziam o horror da existência e a obsessão da morte se mostrava verdadeira.

Já não disseram que filosofar nada mais é do que se preparar para morrer ?

...

Como já disse, em uma só noite a gente varia.

Leveza com sorrisos ! Um brinde a todos vocês, meus queridos amigos !

Por vocês eu bebo nessa noite e sou capaz de contar anedotas e histórias que fariam todos vocês rirem. Deixem-me falar e deixem-me sorrir sem fim.

Por vocês é que - naquela adorável noite - senti a leveza dos mais delicados e suaves passos de uma bailarina por quem me apaixonei na infância.

E aquela bela garota que exaltava Kant exaltava muito mais do que Kant.

Estariam meus olhos famintos denunciando minha etérea felicidade de éter ?

Banharam-me com calor humano sem o saber. Que importa ?

...

Numa só noite a gente varia.

A noite tem uma sacola de litros infinitos e dentro desses litros cabe de tudo. Enquanto alguém sorri tem um outro que chora.

Quem é aqui é capaz de sentir a dor do outro ?

Gélido como nada semelhante. Um corredor de hospital é só um corredor que leva a outros lugares. Mas nele se escondem artifícios e paredes impregnadas de morte.

Não importa quem se salvou ou quem se deixou levar pela elegante e suave condução da morte em seu baile. No baile da dona morte, os únicos convidados são ela e o dono da vida. Cada medo é uma valsa.

Um corredor é apenas um lugar que leva para outros lugares, mas quando as paredes, as esquinas, o chão e o teto estão todos impregnados de morte consumada ou evitada, a gente sabe bem que está em domínio alheio. Comportemo-nos, pois, como educados hóspedes que sabem se portar em cada um dos diferentes lugares.

Ali, naquele corredor, ela - a morte - é soberana. Todos eles se vestem impecavelmente de branco apenas para se esquecerem disso.

...

Submetidos a contingências várias vamos nos fantasiando por aí: do mais dócil cavalheiro que tem boas histórias a contar, munido de seu belo sorriso nos lábios, até o pesado rapaz que enxerga a morte no mais doce morango enfileirado.

Quem é que está preparado para isso ?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Aos 16, ela desejava que todos os bancos, todas as lojas, todas as empresas, todas as universidades, todas as igrejas e todas as famílias explodissem espalhando seus fragmentos pelo campo de batalha.

Aos 18, ela resolveu se organizar em coletivos, experimentar a união dos trabalhadores e dos estudantes. Ela queria se auto-gestionar, como sempre ouviu e repetiu. Enfastiou-se de colar lambe-lambes pelos postes e paredes da cidade.

Aos 24 ela saiu da universidade e já trabalhava. Ainda nutria ódio por quase tudo mas já era tolerante o suficiente para entender que a derrocada de um exército não começava com a morte do general.

Aos 30 nasceu seu filho e, com ele, se viu obrigada a deixar certos egoísmos de lado e pensar em um futuro minimamente digno e humano para si, para seu filho e para sua família. Mas a sua moral, pensava ela, estaria sob eterna guarida.

Aos 36 já estava completamente lambuzada pelo óleo que permite que as engrenagens das máquinas - todas elas - possam funcionar com o menor desgaste possível.

Aos 41 se surpreendeu quando abriu os jornais e leu que grande parte das empresas que tanto odiara aos 16, como Honda, General Motors e Ford, estavam na iminência de uma quebra definitiva.

Ainda sob os 41, chocou-se com gravidade ante a constatação de que não pensava mais nos grandes chefes das grandes empresas. Mas pensava em cada uma das famílias da grande massa de desempregados e seus filhos, vítimas da falência geral.

Aos 50, montou sua primeira árvore de Natal. Com a ajuda de seu filho.

Aos 57 se horrorizou quando após reencontro com antiga colega de universidade, teve de assumir para si mesma que o úlimo livro lido tinha sido o "Pensar é transgredir", de Lya Luft.

Muitos anos atrás era Voltaire que a encantava.

Aos 64, adoeceu.

Aos 67 morreu de câncer. E homenagens fúnebres ao melhor estilo cristão lhe foram prestadas.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Meu primeiro encontro com Deus


"Visceral como a raiva, nada mais é, dado que a raiva drena a seiva da vida e da morte. Quando germinada de uma mentira, quando não furiosamente extirpada, transforma-se em monstro incontrolável em incessante procriação diária." W.M.R.

Naqueles tempos, havia uma espécie de erva daninha que já me era familiar desde a mais tenra infância.
Na praça defronte a minha casa pude a conhecer com suficiente profundidade, sendo que jamais havia me passado pela cabeça, até então, que uma simples e pequena planta, de caule quebradiço e raízes facilmente arrancáveis, pudesse carregar nome tão maldito como aquele.
Elas - as daninhas ervas - e isso era fato comprovado, multiplicavam-se flagrante e geometricamente por toda a pequena vastidão de terra que era a praça, nela se estendendo como lençol verde e homogêneo deitado deliberadamente sobre sua extensão.
Não era muito conveniente, também nesses tempos, os esforços diários para se extipar a praga que se chamou de daninha. Aprendi com meu pai que o pinheiro que acabávamos de plantar poderia não suceder na vida caso aquela profusão que era o lençol verde lograsse vitória na batalha cotidiana pelo espaço, pela água, pelos nutrientes e pela luz.
Assim é que a lembrança desses delicados tempos me impõe esforço hercúleo: a dificuldade para rememorá-los equivale à grande tarefa que consistia em preservar um espaço livre das ervas que prejudicavam a vida.
Mas no frescor da minha vida isso não era assim tão difícil. A tarefa de extipar as daninhadoras para preservar a vida do pinheiro me era extremamente gratificante. A gente - meu pai e eu - se esforçava unicamente para que pudessemos ver o florescimento natural da vida do pinheiro e nosso esforço era diariamente recompensado pela espera.
A gente arrancava mas também esperava. E quando esperavamos, tínhamos nossa recompensa.
Desde cedo constatei, por obra de meu pai, que bastaria esperar, após trabalhar, para que a alegria acontecesse.
Assim era com o pinheiro e assim deveria ser com as outras coisas. Não importava que para crescer, era necessário matar. Tal conta não se formulava nessa época: só com a morte das daninhas é que conseguiríamos a vida.
Por outro motivo, existiu um certo dia em que eu também tive de esperar. Dessa vez me foi exigido algo muito mais complicado e para o qual meu pai não havia me preparado diretamente. Eu já havia esperado outras vezes em tempos anteriores, e já havia insculpido em meu espírito virgem a convicção de que o esforço que precedia a espera era recompensador.
Talvez por isso, naquele dia de céu azul, um dia que era comum para o mundo inteiro, mas que se deitou sobre mim como sombra malévola de ilusão adquirida e perdida, a coisa não se sucedeu de forma igual.
Naquele dia ... dia que me estremece os lábios e que faz suar com largas gotas meus olhos riscados por ondas vermelhas ... eu também esperei pacientemente. Também me regozijava pela minha paciência aprendida, do pinheiro que merecia viver à erva que merecia morrer, eu esperava aquele momento em que sorriria pela evidência da vitória: a vida.
Não sei muito bem como ocorreu, diante da distância dos anos e da necessária couraça com a qual me vesti.
Sei apenas que a coisa toda aconteceu exatamente da mesma forma como eu fazia com as ervas daninhas: minhas mãos bastavam para arrancar convictamente suas raízes e seu caule. Em segundos, ela já não mais vivia. Em questão de segundos também meu pai foi tirado de alguém que mal lhe conheceu. Uma dor no braço esquerdo que se estendeu para um coração parado e que se abateu sobre uma família de emigrantes do norte.
Na nossa moira, os fios da vida haviam sido cortados sem hesitação.
Mas mesmo assim eu esperei, exatamente da mesma forma como havia aprendido. Acho que havia sim alguma boa intenção, alguma tentativa de remediar essa tragédia particular, a justificar as palavras daquela senhora que me consolava na minha pueril ignorância de quem não compreendia mas sentia o peso de uma morte que ainda então não lhe era lícito avaliar.
Há outro motivo para terem me pedido para esperar ? Corri para o lugar mais aberto da casa, o lugar no qual eu poderia ter a mais ampla visão do céu azul que mostrava apenas uma infinita parcela de sua vastidão. De lá eu poderia assistir ao retorno de meu pai, envolto em nuvens, rodeado de Deus e de santos, trazendo um pequeno pinheiro em suas mãos ele me daria um abraço, um abraço diferente de todos os outros que já havia recebido, dado que seria o primeiro abraço pós-morte dado nos braços de seu filho que sentia sua estranha falta, sua cotidiana lágrima.
A cada naco de nuvem que se aparentava a um pequeno borrão, até às mais complexas formas de navios e cabeças que passavam diante de meus olhos, eu esperava com paciência infinita. Passado um bom pedaço de tempo, confirmei que as nuvens - todas elas - haviam se esquecido de trazer meu pai de volta.
Nenhuma delas foi capaz de atender a promessa que havia sido feita para mim, por aquela senhora de coração bom mas de ignorância ímpar quanto ao efeito que uma simples espera provocaria em um ser habituado a esperar.
Deus não agiu e meu pai desapareceu para sempre. A promessa da ingênua senhora se descumpriu e isso ninguém é capaz de apagar.
Dias depois fui capaz de chorar pela promessa irreal, com minhas mãos segurando aquela pequena gravata envolta em discreta embalagem de cartolina azul. Presente que eu não esperei mais para dar, diante da proximidade da lata de lixo.
Naquele triste dia de nuvens bailando pelo céu azul, de promessa descumprida, de retorno irrealizado, de espera paciente, tive meu primeiro encontro com Deus.
Para nunca mais desejá-lo na vida.