quinta-feira, 22 de maio de 2008

sofrimento sereno














Laocoonte, no Museu do Vaticano, Roma. Fotógrafo: eu mesmo ! que felicidade....


A história de Laocoonte é a história do homem que sofre. Sacerdote do deus Apolo, Laocoonte foi morto, em conjunto com seus dois filhos, pela serpente enviada pelo deus Poseidon, em episódio narrado na Ilíada, de Homero.
Obra de importância fundamental na arte grega, foi por meio dela que J.J. Winckelmann, na clássica obra "Reflexões sobre Arte Antiga", definiu o ápice do processo de perfeição e beleza desenvolvido pelos gregos nas belas artes, seja sob o ponto de vista da perfeição e harmonia de suas formas, seja pelo que carrega em seu simbolismo mítico.
De fato, na cultura grega clássica, a representação artística dos deuses desempenhou importante elemento de expressão do meio social do qual surgiram. Diferentemente do deus da tradição judaico-cristã, bem como dos mortais que foram erigidos posteriormente à condição de santos, a grande lista de deuses e semi-deuses gregos se notabilizava pela intensa reprodução dos mais puros sentimentos humanos, intensificado pelos poderes e pelas glórias emanadas do Olimpo.
Assim é que a líada, de Homero, antes mesmo de ser uma narrativa épica sobre a Guerra de Tróia, travada entre aqueus e troianos, pode ser definida também como a história de uma guerra movida pelas mais simples e cotidianas paixões humanas: o amor, o desejo de vingança, a busca pela glória e pela honra, as preferências e conspirações entre deuses para favorecer um ou outro homem ou lado do conflito, a impotência e a fraqueza humanas.
Nenhum dos deuses gregos estava imune a tais sentimentos tão tragicamente humanos, mas ao contrário, deixavam muitas vezes dominarem-se pelas paixões, para em seguida agirem, com todo seu poder e prestígio, na intensificação ou na resolução da guerra.
É na simples humanidade dos sentimentos demonstrados pelos deuses olímpicos que residia sua legitimidade e força entre os gregos, lógica essa que se encontra presente - ainda que de forma bastante diferenciada e já distante de uma humanização- em grande parte das mitologias atuais, inclusive a cristã católica.
No entanto, embora haja a presença desse traço humano no perfil psicológico dos deuses gregos, é igualmente certo que a condição divina outorga uma diferença vital na exteriorização das emoções e das paixões.
Essa diferença vital se manifesta na contraposição que pode haver entre um sofrimento suportado por um homem comum, e aquele que é representado pelos gregos, sobretudo em relação aos deuses.
Há, por exemplo, formas e formas de se expressar um sofrimento, em uma matiz que pode oscilar entre a histeria e a soberania. O sentimento da dor pode provocar como forma de alívio, um grito agudo ou um gemido grave, saído de lábios retorcidos pela dor ou que ainda conseguem - mesmo em estado de dor - preservar uma superioridade em relação a ela.
Para Winckelmann, a escultura de Laocoonte - mesmo não se tratando da representação de um deus - apresenta com perfeição tais características, das quais destaco em especial a questão chamada de sofrimento sereno.
É possível sofrer com serenidade ? A dor pode ser compatibilizada com uma atitude psicológica que nos afaste de uma posição de submissão em relação a ela ?
Obviamente a obra de Winckelmann não se propõe a responder a tais questões, mas coloca em tamanha evidência a soberania e a serenidade com que Laocoonte sofre em seu momento de morte, agravado pela morte iminente de seus dois filhos que o acompanham, que a indagação - embora extrapole a análise estética - se coloca como uma questão atual e cotidiana para nossas próprias vidas.
Laocoonte é homem e sofre. É picado por uma serpente que, fatalmente, irá também matar seus dois filhos. Laocoonte sofre com soberania e serenidade, na medida em que se coloca em posição superior à sua dor, e sua expressão facial indica claramente isso: há dor, mas há dor sofrida com serenidade.
Sua expressão indica a morte iminente, mas não há traço de histeria na manifestação do sofrimento. Seus lábios mostram que a dor lhe provoca gemidos. Não provoca gritos ou histeria. Com algum exercício de imaginação e entrega à apreciação da escultura, pode-se "ouvir" um gemido grave, prolongado e algo duradouro.
Seu corpo contraído indica a luta contra a morte provocada pela serpente. Não há um corpo desfalecido e entregue, mas sim um corpo no auge de sua forma, com os músculos claramente demonstrando a própria soberania do corpo em relação à dor.
O momento apresentado na escultura é o ápice da dor. Não o antes e não o depois. Mas sim o cume do sofrimento que coincide com a picada da serpente em sua cintura.
A partir desta exata cena, podemos visualizar o que se passou antes, com o ataque da serpente, e podemos visualizar também o que vem depois: a morte de Laocoonte e seus dois filhos.
Para Winckelmann, em defesa apaixonada da arte grega, em especial da escultura, este foi o ponto máximo e mais belo atingido pelos homens nas artes. Laocoonte é a própria representação do limite a que pode chegar a arte humana, sendo que toda a arte produzida após os gregos, não passa de arte decadente, na medida em que progressivamente se afastou do ideal helênico.
Tomada de posição radical, sem dúvida, mas que Winckelmann defende com tamanha ardor e paixão, que é muito tentador se render à sua conclusão óbvia: a arte só voltará a significar algum valor estético ao homem, quando este reconhecer que nada mais lhe resta a não ser efetuar o exercício da mimesis, ou seja, desenvolver as artes a partir do conceito grego, imitando-a, sob pena de observarmos apenas sua a progressiva decadência.
Nesse ponto, retomo a indagação acima. É possível sofrer com serenidade ? A dor pode ser compatibilizada com uma atitude psicológica que nos afaste de uma posição de submissão em relação a ela ?
Não é preciso concordar, evidentemente, com a polêmica e apaixonada defesa da arte grega clássica de Winckelmann, tampouco enxergar a arte posterior como pura decadência.
A questão que se coloca, no fundo, é se podemos a partir dessa análise estética de Laocoonte, estender arbitrariamente, de alguma forma, a sua análise, para cogitarmos acerca da possibilidade e da aplicabilidade, em nossa própria vida, do conceito de sofrimento soberano.
Que a dor e o sofrimento são inevitáveis, isso faz parte de um conhecimento evidente de quem vive. Mas podemos sofrer estando acima da dor ? Podemos submetê-la a nós mesmos ?
Laocoonte segue sendo um enigma particular para mim, ao mesmo tempo que um ideal, uma inspiração para além do campo estético, daquilo que eu mesmo gostaria de alcançar, no que se refere à simbologia da relação entre dor e sofrimento, fenômenos inevitavelmente humanos.

Um comentário:

Lúcia disse...

Seria sofrer com serenidade uma forma de sofrer com dignidade? O sofrimento, como você diz, existe, é fato. A dor, física ou emocional, ou qualquer outra, está em nosso cotidiano. O que penso que deve ser a busca, com relação a este assunto, é não deixar-se levar pela dor, não se entregar simplesmente. Sentir, deixar o sentimento vir, mas não ser dominado por ele, não? E, assim, talvez, permanecer ao menos com a dignidade que o sofrimento e a dor costumam tirar...

Sei que serenidade e dignidade são coisas diferentes, mas creio que neste caso, as duas estão totalmente ligadas.

Fácil entender, difícil sentir e agir...

Lúcia