sexta-feira, 28 de março de 2008

Rua Augusta - São Paulo

Passam por mim e não me percebem. Eu procuro um olhar cruzado. Meus lábios já estão feridos pelo frio e a ventania. Deles sai um leve vermelho sangue e doce que amortece minha língua. Esse é o meu gosto. Pela manhã cortei o cabelo tentando ser mais uniforme comigo mesmo. Olhei-me pela manhã e me odiei.

Até há pouco encontrava-me caminhando. Cruzei a Praça da Sé e novamente quis entrar na igreja para dar quinze passos a partir da porta e olhar para cima até ter meu queixo apontado para o teto que parece não chegar. Fiquei assim imóvel até doer meu pescoço e de um só lance abaixei minha cabeça e sai. Os vitrais, as curvas e aquele redemoinho estavam lindos e nem o cinza da tarde ofuscou aquela luz amplificada.

Então veio o metrô e as pessoas estavam cansadas e com olheiras. Um casal de estrangeiros estava maravilhado com a novidade. Quis ser eles para poder sentir o novo.

A Avenida Paulista congela e racha meus lábios, por mais uma vez. Há vitrines douradas por todos os lados. Os sebos hoje estão todos desinteressantes e levemente mais empoeirados do que já estiveram. Tenho uma nota no bolso que trocaria por qualquer romance que salvasse minha vida. O lugar mais aconchegante é o cyber café dominado por pessoas com dois buracos fundos no lugar onde deveriam estar os olhos. E então elas não se olham.

Na Rua Augusta queria caminhar até o fim e encontrar aquela curva à esquerda que sempre estranhei. Ofegar. Hoje estive em jejum durante todas as horas e meu estômago mal notou. Quando comi, entreguei-me ao prazer irracional de mastigar e engolir e assim consegui me desligar de todo o mais que estava ao meu redor.

É assim que os cães fazem.

quarta-feira, 26 de março de 2008

o erro é meu ou de Paracelso ?

O vínculo gradativo entre o amor e o conhecimento, ou seja, de que quanto mais se conhece o objeto amado, maior é a capacidade de amá-lo, é um pensamento que há muito me convenceu.

Inversamente proporcional a esse pensamento, também há muito me parece evidente que a paixão amorosa, essa força instantânea, descomunal e capaz de estremecer as mais sólidas estruturas, está diretamente associada ao desconhecimento do objeto amado, ou seja, apaixonamo-nos com fúria e intensidade exatamente na mesma medida em que desconhecemos aquilo que nos despertou a paixão.

Se for razoável efetuar qualquer tipo de metáfora ao que está acima dito, pode-se dizer que o amor possui mais flexibilidade do que força, asselhando-se mais a uma árvore já enraizada e estabilizada, capaz de suportar todos os sacolejos de uma forte ventania: balançam os galhos e as folhas muitas vezes se descolam, mas o tronco permanece estável e flexível.

A paixão, por sua vez, agora com as escusas de uma metáfora metida a engraçadinha, pode ser associado à imagem de um daqueles caras de academia de musculação - cada vez mais comuns - que são dotados de grandes músculos adquiridos com o incansável levantamento de pesos variados, tornando-se enormes e em geral com uma resistência física, um "fôlego", bastante limitado.

Tais caras, aliás, talvez possuam força suficiente para levantar um carro ou um hipopótamo, em um só golpe, tendo assim uma inegável explosão de força. No entanto, pode-se dizer que a paixão e os musculosos acima possuem muito mais força do que flexibilidade, e que se forem também uma árvore, terão belos galhos malhados e folhas robustas, mas o tronco dificilmente suportará um leve entortar, espatifando-se como um galho seco.

Feitas as absurdas comparações, uma única razão me levou a pensar neste texto: o fato de ter reencontrado, ou relido, esta passagem de Paracelso:

"Quem nada conhece, nada ama.
Quem nada pode fazer, nada compreende.
Quem nada compreende, nada vale.
Mas quem compreende também ama, observa, vê...
Quanto mais conhecimento houver inerente numa coisa, tanto maior o amor...
Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo,
como as cerejas,
nada sabe a respeito das uvas."

Razoável, não ?

Agora tente pensar que se isso for efetivamente verdadeiro, então teríamos, em tese, uma segurança ou garantia de que se nos empenharmos no conhecimento do objeto do amor, ou da pessoa amada, este amor estará de alguma forma consolidado e dificilmente poderá sair de nosso "controle", na medida em que o conhecemos com profundidade. Nesse sentido é a pertinência das metáforas acima, se o amor é forte como um árvore bem enraizada, é porque esta deita suas raízes no fértil solo do conhecimento sobre o objeto do amor, enquanto a paixão embora possua força de explosão, não possui raízes que lhe garantam a sustentação em caso de vendaval. Vale dizer, não se conhece ainda verdadeira e profundamente o objeto amado.

Mas agora vale pensar também nos inúmeros exemplos que todos têm, de amores que se rompem mesmo havendo, em princípio, conhecimento sobre o objeto amado. Quantas e quantas pessoas não cedem a uma paixão e renunciam a um amor ? Será que estas pessoas realmente se conheciam e desenvolveram esse amor fundado no conhecimento sobre o outro, ou então, o conhecimento sobre o outro não implica necessariamente em amor ?

O outro, o amado, efetivamente pode ser conhecido ? Ele pode ser conhecido como uma cereja ou uma uva o podem ? Não estaríamos incorrendo no grave risco de se totalizar uma certa concepção sobre o outro, de modo que ao afirmarmos que o conhecemos, acabamos o transformando em uma coisa dada e definitiva ?

Tal forma implicaria em uma certa petrificação de nosso olhar e conhecimento sobre o outro, e o grave erro reside exatamente em tornar ou querer tornar imutável e definitiva, uma pessoa, sem considerar que ela é um eterno "vir a ser", um processo de completude que nunca se encerra.

Quando nos damos conta de que qualquer um vive em constante mudança, e que nosso olhar capta apenas aquele ser que se apresenta aos nossos olhos, naquele exato instante, e não em outro, e que qualquer tentativa de petrificação, sobretudo quando esperamos certas atitudes e posicionamentos em razão de um conhecimento que julgamos ter sobre o outro, podemos talvez iniciar uma longa e interminável caminhada de não nos frustrarmos com escolhas e atos que não podemos controlar, mesmo daqueles a quem julgamos conhecer e ter amado.

Isso, no fundo, é respeitar e compreender a liberdade, e talvez a amaldiçoarmos...

Assim.....eu errei ? Ou a culpa é de Paracelso ?

segunda-feira, 24 de março de 2008

“Não tenho nada a defender; não me envaideço da minha vida e não tenho um níquel. Minha liberdade? Ela me pesa. Há anos que sou livre à toa. Morro de vontade de trocá-la por uma convicção. De bom grado, trabalharia com vocês ; isso me afastaria de mim mesmo, e tenho necessidade de me esquecer um pouco (...) Apesar de tudo, não posso tomar partido, não tenho razões suficientes para isso. Revolto-me, como vocês, contra a mesma espécie de indivíduos, contra as mesmas coisas, mas não é o bastante. Não é minha culpa. Mentiria se dissesse que me sentiria satisfeito em desfilar de punho erguido ao som da Internacional”.
L´Âge de Raison - J.P. Sartre

Porque muitas vezes o sentido das coisas, é tardio...

terça-feira, 18 de março de 2008

repugnância

Quando Enzo se aproximou da garota sem nome e sem história, com seus seios de pêra explodindo a blusa justa de corte moderno - desejo infantil de se diferenciar de sua retrógrada mãe - apenas pensava no gosto daquela língua sedenta e na consistência de seus lábios falsamente carnudos, realçados com gosma industrializada. Enzo sacolejava o corpo tentando fazê-lo encontrar alguma harmonia com a música que tanto conhecia, que tantas vezes já tinha massacrado sua cabeça e que por inúmeras oportunidades havia exprimido suas alegrias.

Sinuosamente alcançou a proximidade necessária da anônima. Ainda não havia colado seu corpo no dela, mas já pressentia o roçar dos corpos e amaldiçoava as roupas como sutis barreiras aos instintos primordiais. Olhava-a fixamente e seduzia-a falsamente. Sentia que não havia momento melhor do que aquele que vivia: corpos sem nome, música que ativava suas reminiscências e iminência de beijo.

Sorria sensualmente ele - Enzo - com sua boca de dragão flamejante, ávida por engolir o ser daquela anônima. Ela, inflava ainda mais os lábios sem carne, conduzia-o em uma dança sem fim, sugavo-o em uma espiral que não terminava - da qual era o sedutor centro - rumo a seus lábios, rumo à sua boca, rumo à sua alcova.

E a música prosseguia com mais ênfase do que nunca. As batidas, os instrumentos, a melodia, tudo conspirava a um só momento perfeito, do qual eram apenas uma preparação: primeiro o roçar dos corpos, depois os olhares diretos e cruzados, e por fim, o beijo que iria fazê-los ter a falsa e sedutora sensação de serem um sendo dois.

Mas Enzo foi vítima e autor de outros planos. O desígnio do acaso, ou se preferirem, a intensidade da manifestação do inconsciente, capaz de transformar o mundo prático, aplicou-lhe uma bela rasteira: se a música era boa e conduzia ao sublime momento do beijo e dos corpos em choque e, se os lábios carnudos - mas sem carne - e brilhantes daquela anônima de corpo sem nome, se tudo, absolutamente tudo, estava encadeado como os elos de uma corrente, rumo ao momento perfeito, rumo ao ápice da noite, então não havia, como de fato não houve, qualquer explicação possível para o lamentável episódio que se seguiu.

Um jato de vômito pesado e denso, cravejado dos mais diversos pedaços de alimentos das últimas horas, perfumado com o mais acre odor de digestão inconclusa, voou diretamente em movimento retilíneo para o delicado rosto da garota sem nome. Escorreu de sua fronte rumo aos lábios que seriam beijados, apagou a gosma de indústria que lambuzava seus lábios pretensamente carnudos. Manchou sua roupa. Melou seus seios de pêra agora apodrecida.

Enzo nada compreendeu. Apenas vomitou. A música sinistramente se interrompeu e o caminho para o sublime momento se sujou. Não houve perdão ou desculpa. Enzo se corou de vergonha, o sangue lhe inflou a face, corou de tinta aquele homem que se julgava decidido.

Ele havia vomitado. E vomitou no rosto da garota que pretendia beijar. A noite acabou para Enzo e para a garota e mais uma vez o amor se frustrou.

segunda-feira, 10 de março de 2008

teorias da loucura

Eu a perdi sem mesmo nunca a ter visto. Nunca a vi. Nunca soube como desvia seu olhar quando inquieta, como prenuncia uma tristeza com os olhos, como disfarça um pensamento indesejado, como deseja um pensamento bom, como sua boca se desenha quando observa ou imagina alguma coisa bonita . Nunca a vi mexer os cabelos, nem chacoalhar as mãos por alguma ansiedade. Ela nunca respirou estando à minha frente e tampouco pude saber se as mágoas e as tristes palavras que explodiam de si, ressoavam em qualquer parte de seu corpo.

Mas se não a vi, eu a li. E se a li, eu a descobri.

E a descobri de início impulsionado pelo acaso, esta força poderosa cujo único poder reside no inesperado. Quando eu a li, deparei-me com um universo movediço e escorregadio, um pântano no qual deliberadamente me deixei afundar. E então pude conhecer suas palavras: densas, melancólicas, cheias de dor, mas reveladoras de uma certa confiança em um futuro que seria possível e que abarcaria em seus longos e pesados braços, uma vida menos corroída pela insensatez e pela objetividade do mundo que a estilhaçava dia após dia.

Foi assim que ela se mostrou, por meio de suas palavras e de suas frases, de textos que escancaravam aquela mulher real e palpável, a mulher que a imensidão de pessoas ao seu redor estava vergonhosamente incapacitada de perceber, ludibriada em um universo infinito de frivolidades e tolices.

A escritora talentosa surgiu de uma sensibilidade que clamava por expressão, de palavras que se suicidariam de desgosto, caso não fossem digeridas em sua essência: a luta de uma mulher por uma compreensão de si mesmo, a superar a ingenuidade que era típica de uma época.

Nesse conhecimento mútuo, a dialética se mostrou presente durante a troca de correspondências entre um curioso leitor e esta jovem escritora. Uma agradável divergência de mundos, valores e sonhos. Uma cisão nos problemas e nas desgraças, também. A cada assunto, um caminhão de palavras dirigidas ao império do outro - este reino inacessível e de caminho tortuoso - na tentativa amável de se fazer compreender em um universo de incompreensão.

"Se tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo", como diz Heráclito, a finitude também se mostrou presente. Mas, o que importa quanto tempo efetivamente durou ? A duração e o esforço pela compreensão não estavam no tempo decorrido, mas sim na força das palavras e no desejo de as ler.... Talvez tenhamos nos julgado amigos em algum momento desses. Amizade que não existiu em um olhar compartilhado ou em um resvalar de mãos, mas na projeção de sentimentos e esperanças pelas palavras.


Depois, chegou o mundo e seu fluxo titânico. E as palavras nada puderam contra eles. A pena secou. A ingenuidade cedeu lugar ao desencanto. Os sentimentos abriram caminho ao aprisionamento, de que seriam vítimas. A voz se transformou em silêncio ofensivo. E as lágrimas...estas ainda não se sabe...mas devem ter evaporado de onde brotavam com facilidade.

O mundo é um monstro que a tudo engole. Hoje ela sobrevive dentro desse mundo, dentro desse monstro, trabalhando e operando com as leis - ponto comum e distante que liga este leitor e esta escritora. Impossível dizer que fim deu às palavras, talvez um doloroso exercício de regurgitação que não se completa, talvez uma complicada renúncia de si mesmo, talvez uma perfeita adequação a um mundo inadequado.

Cada caminho reflete uma escolha, e escolhas não precisam ser definitivas. Este longo período de tempo em que não tivemos qualquer resquício de contato, provocou-me uma constatação: a escritora viveu em suas palavras e morreu em seu silêncio.

Mas esta morte é triste escolha.


quinta-feira, 6 de março de 2008

Por brevíssimos momentos vi uma senhora já bem idosa, de camisa verde grande e shorts azul de colégio infantil, com cabelos cor de nuvem e rigorosamente penteados para trás. Este corpo ocupava um cubículo com paredes rachadas e sem tinta, feio, mas que estava permeado de diversas cores vindas dos mais variados sacos grandes e pequenos de salgadinhos, doces, balas e sabe-se lá mais o que. Transitava traquinamente entre os sacos coloridos, com leve e tranquilo sorriso no rosto, exibindo suas perninhas curtas e gorduchas apertadas pelo shorts, em um ímpeto de verificar se todos os sacos e cores estavam como efetivamente deveriam estar: atraentes.

Na pequena fração de segundos em que a observei, um poderoso pensamento me dominou, não deixando espaços e tampouco incompletudes: essa velhinha, logo ela, era uma velhinha feliz!
... Hoje me sinto como um animal.
Hoje eu grito como um animal.
Hoje eu estou fora de controle.
....
Tudo que desejo é estar com você novamente.

quarta-feira, 5 de março de 2008

"O furo sereno e profundo invadiu as entranhas do peito, trazendo na faca pontiaguda e de bela lâmina, um sangue puro e íntegro que corria nos mais secretos vasos do coração. O grito que se seguiu ao furo, foi sucedido por outro e outro grito, e era grito quase inaudível, mas tão violento e intenso para aquele corpo de peito furado, corpo de herói vencido deitado sobre o mármore gélido e branco, que espasmos percorriam a extensão de sua carne mole estendida sobre a pedra.

Profundos lamentos e gemidos de dor preenchiam todos os espaços e buracos do ambiente, tal como um gás venenoso envolve em sua nefasta volatilidade, em um abraço letal, a todos aqueles que ousam respirar o ambiente em que ele perniciosamente se encontra.

O que se passou antes do furo retilíneo e impiedoso que estocou o peito do vencido, foi apenas um fúnebre ritual preparatório da sessão de julgamento e condenação do corpo, uma sinfonia melancólica que prenunciou o austero sofrimento de um derrotado.

Assim é que o ritual lento e obscuro se arrastou de forma viscosa e gordurosa, uma lesma inchada e pesada que atravessa a custo um túnel repleto de sebo. O corpo nu e liso, pálido como mármore, foi deitado sobre a cama de pedra branca. A cabeça do estúpido herói, sem cabelos, afundava o pequeno e maciço pedaço de madeira marrom que a sustentava. Ele poderia fugir, o herói estúpido. Nenhuma corda, nenhuma corrente, nenhum braço forte o prendia aquela dura cama, no entanto, sabia ele que seu crime havia sido deveras grave, e que a vergonha o perseguiria freneticamente até o último de seus dias, sendo talvez mais cruel do que a punição a que seria submetido naquela sessão solene e formal de julgamento.

Não havia mais tempo para nada. O crime praticado exigia punição e a platéia que assistia a tão triste solenidade, também não dispensaria o rigor de uma punição exemplar ao estúpido herói, para que este mesmo sentisse em sua carne a consequência de seu ato, e para que todas as outras pessoas pudessem para sempre se lembrar - e evitar semelhante ato - do triste fim de um criminoso.

Corpo estendido e platéia ávida. Só restaria então o carrasco entrar no ambiente em que a justiça prevaleceria sobre todo e qualquer mal. E isso não tardou a ocorrer. Com passos lentos e decididos, amparado pelos justos deuses, o carrasco avançou em direção ao corpo que clamava por punição. Suas firmes mãos exibiam orgulhosamente o instrumento pelo qual os céus e os deuses manifestariam a prevalência da justiça neste mundo: trazia ele consigo a faca de lâmina resplandecente e aguda, com sua ponta fina e delicada, que sequer se fazia notar ao penetrar a carne, suave e educada, mas que com o deslizar de seu corpo nas entranhas, produzia uma doce melodia crescente e monótona, até que a ponta fina e delicada se mostrasse como de fato era, uma singela porta de entrada para a lâmina mais grosseira que arrombaria a qualquer fibra.

A todo condenado é conferido o direito de ser sabedor do crime praticado. Se sobreviver, poderá usar sua história como exemplo de fracasso e ensinar também às gerações vindouras o quanto pode ser infeliz o homem que viola os princípios naturais facilmente encontráveis nas relações humanas.

E foi somente por isso que o carrasco ainda lhe outorgou esse direito, anunciando os motivos da condenação, enquanto postado ao centro da cama de pedra gélida, levantava vagarosamente seus braços, com as mãos unidas em torno do cabo da faca, como um só bloco uniforme de mãos, faca e vontade de punir: " Ó pálido e triste herói, teus gemidos soberanos de dor não esconderão o crime que cometeste, e nem mesmo a mais bondosa das criaturas poderia suportar a vergonha de seu ato. Receba esta punição como justa retribuição ao seu crime. Você está sendo julgado e condenado por ter acreditado no amor."

Entre o som da palavra amor e o deslizar doce da lâmina pontiaguda que estocou o derrotado, não houve solução de continuidade. Seu peito fechado tornou-se então um peito furado, e as mãos do carrasco haviam decretado e realizado a condenação, tendo sido suas mãos empurradas simultaneamente pela infinidade de deuses justos que abominavam o crime praticado pelo herói vencido.

Ao ato de justiça se seguiram aplausos da platéia. Revigorados em suas convicções, sentiam-se orgulhosos de presenciarem a eliminação do caos e do perigo introduzidos pelo herói derrotado, agora herói de peito furado e gemidos de dor vergonhosos.

Ele não chorou ao ser estocado pela faca justa. Porém, deveria. Mas também não sucumbiu ao golpe, não morreu com a punição recebida. Mas emitia grunhidos e gemidos de dor profunda, dor que não se apaga. Dali em diante, se sobrevivesse de fato, estaria ele irremediavelmente condenado por seu crime, vagando pelas ruas e pelas noites ostentando seu peito furado, triste marca do amor em que errou ao acreditar. "

E então eu acordei....respirando com sofreguidão.

constatações

Meus olhos fundos e pesados
com suas pinturas de guerra na linha inferior,
um quadro obtuso com molduras quebradas,
denunciam a quem ousar atravessá-los com o olhar:
Não há descanso para aquele que amargura
a dor que repousa espinhosamente em seu peito

Tentem convencer de que tudo não
passa de ilusão ou opção, e serei o primeiro
amargurado a levantar
e brindarei a razão
de tão ponderada voz

Mas as noites em claro
e o corpo tenso como montanha inflexível
sobrepujam qualquer razão
e impõem com ímpetos violentos:
não há descanso senão em seu maldito leito