segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Vicky Cristina Barcelona

A história do último filme de Woody Allen (Vicky Cristina Barcelona, 2008, Estados Unidos/Espanha) é basicamente a seguinte: duas amigas norte-americanas vão passar férias em Barcelona, uma delas, Vicky, estudante da cultura catalã e prestes a se casar, e a outra, Cristina, solteira, com um curta-metragem irrelevante em sua carreira de cineasta e atriz.
Embora amigas e compartilhando opiniões comuns, ambas discordam quando o assunto em pauta é o amor: para Vicky nada melhor do que a segurança de um casamento com um bom homem, responsável e educado, tal como seu noivo. Já para Cristina, nada de certezas sobre suas vontades positivas, a não ser sua certeza negativa de saber o que não almeja para sua própria vida.
Chegando em Barcelona, onde se hospedam na casa de conhecidos, se inicia a peregrinação pelos pontos turísticos e históricos da bela cidade, inclusive com visitas a exposições de arte, até que em uma certa noite, ao jantarem em um restaurante, são abordadas por um homem desconhecido, bastante galanteador, que as convida clara e abertamente para uma viagem a Oviedo, onde poderão se conhecer melhor, beber vinho e fazer sexo, em suma, uma viagem para enjoy the life.
Com alguma relutância de Vicky, as duas partem para Oviedo em companhia desse então desconhecido, chamado Juan Antonio, pintor e artista plástico, filho de um poeta que não divulga suas poesias e recém-separado de sua ex-esposa, Maria Elena, também pintora.
O que se segue é que Juan Antonio sucessivamente conquista Cristina, depois Vicky e após as conquistas, retoma a relação com sua ex-esposa Maria Elena. Retoma a tal ponto que esta, após tentativa de suicídio, passa a viver sob o mesmo teto que o ex-marido e sua já companheira Cristina, surgindo então, após período de adaptação e estranhamento recíproco, um trio amoroso forjado em descobertas amorosas e sexuais, que termina com o retorno de Cristina e Vicky aos Estados Unidos.
Com as escusas da sinopse com gosto amargo de Folha de São Paulo, o novo filme de Woody Allen é sim interessante. Em geral, aborda os assuntos cotidianos em relação aos quais gastamos boa parte de nossas vidas tentando compreender: relacionamentos amorosos, diferenças ideológicas e culturais, a construção de si mesmo mediante projetos futuros e as renúncias que inevitavelmente devem ser feitas na vida.
Como já é praxe na carreira de Woody Allen, é o amor que desencadeia tanto os sonhos como as frustrações das personagens, dando vazão ao tipo categórico da neurótica, da romântica, da idealista, da pragmática e demais que habitualmente compõem o universo de Allen.
Até aí não há nada de extraordinário, pois é inegável que o universo humano, com suas dores e suas alegrias, é fonte inesgotável de reflexões e ironias, não residindo aqui o que julgo ser o ponto frágil do filme, uma vez que as artes em geral não se furtaram nunca de nos apresentar o humano, mesmo quando mostrado em tintas e palavras heróicas.
O que realmente é o ponto fraco em Vicky, Cristina, Barcelona, é que o cotidiano humano tenha sido mostrado a partir de arquétipos que não ultrapassaram o lugar comum, não se libertando disso nem mesmo a própria cidade - Barcelona - na qual se passa a história.
Assim é que duas das principais personagens, Vicky e Cristina, mulheres norte-americanas advindas do mundo protestante e pragmático que são os Estados Unidos, ainda que de sua ala mais liberal (Nova York), experimentam todos os dilemas amorosos, as tentações da carne e da alma - escolhas nas quais se projetam seus valores - na cidade, evidentemente latina, de Barcelona.
Ora, a chata expressão caliente tem muito do que se diz ser a alma do latino: emotivo, idealista, movido a paixões. Arrebatador, muitas vezes. Para isso então, imponha-se Barcelona!
Woody Allen se utiliza disso para nos introduzir o mais perfeito chavão do personagem latino: Juan Antonio Gonzales, sujeito com cara de cavalo (como me disseram), mas artista (entenda a ironia...), sedutor ao extremo, cara de pau, filho de poeta excêntrico, que leva uma vida boêmia e aparentemente sem preocupações materiais, coisas que apenas europeu nato sabe o que é.
Falamos aqui do mais típico e sedutor galã latino, que vê nas pobres pragmáticas norte-americanas, duas presas fáceis para seu belo discurso.
Some-se a isso outros exemplos de lugar comum: a oposição artista X executivo, aquele dotado de sensibilidade e este de monstruosidade. Aquele como paradigma de um espírito livre e este como o próprio dinossauro do conservadorismo.
Ou então, o artifício do chamado amor livre entre Juan Antonio, Cristina e Maria Elena, com direito inclusive a discurso padrão de Cristina, já então descolada e modernosa. Evidentemente não se trata de afirmar que o amor livre não possa de fato libertar de certos entraves, mas quando o mesmo é colocado em contraste com o amor monogâmico apresentado praticamente como uma relação entre idiotas (Vicky e seu noivo), assume um tom maniqueísta que remete - inevitavelmente - aos romances panfletários de Roberto Freire.
Assim como nem toda relação monogâmica é uma relação entre idiotas, embora muitas o sejam, nem toda relação amorosa livre é uma relação de fato libertadora. Perde muito em profundidade e seriedade a história, ao fazer tão previsível contraposição de mundos: artista-descolado-trepo com todo mundo X casal chato e burro que quer uma casa high tech e um casamento romântico na Espanha.
É natural que um filme limite a abordagem psicológica das personagens. Não há muito tempo para tais nuances. Mas os maniqueismos presentes no filme de Woody Allen quase o contaminam por completo, não chegando a tanto diante das pequenas e constantes reviravoltas no desenrolar da história, assim como na constatação final vivida por Cristina: não se preenche a existência do eu eternamente incompleto e insatisfeito no outro.
De toda forma, ao expor os dilemas humanos tais como a exigência da afirmação de valores mediante as escolhas cotidianas, o conflito entre diferentes moralidades e a busca pela construção de si mesmo (sobretudo Cristina), o filme é um que vale a pena ser assistido.
Lamento apenas é que as ambiguidades tão tipicamente humanas - não sendo monopólio de artistas ou executivos - tenham sido deixadas de lado em nome dos lugares comuns que facilitam - mas emburrecem - a história.




sexta-feira, 14 de novembro de 2008

leão cansado

Sabe o que é, o que sente e como se comporta um leão cansado ?
O amargor do fel apodrecido que preenche sua boca repleta de dentes afiados por tantas presas devoradas ao longo dos anos, moldaram - definitivamente - seu caráter.
As carcaças das presas - curiosa e simultaneamente vítimas e algozes - deixaram marcas por todo o seu corpo e, de seu estômago, de seu intestino, de todo e qualquer órgão que lhe compõe, é possível identificar cada rastro, cada marca, que deixaram impressos ao deslizar suavemente a partir do colchão áspero e úmido da grande língua.
Um leão cansado é assim: já não mais ataca, já não mais parte em busca da caça. Talvez por excesso de orgulho, talvez simplesmente por já ter desistido de antemão. Não importa. Apenas e tão somente aguarda que a presa - seja ela qual for - se aproxime de seu raio de ação.
Não subestime a expressão constante de sono e preguiça, tampouco o corpo estendido sobre a relva ou sobre o asfalto: é no descanso que se elaboram os melhores planos, as melhores caças.
Note que inúmeras, centenas e milhares de infinitas pequenas moscas rodeiam incessantemente a cabeça de um leão cansado. Pretendem elas, e disso não há a menor dúvida, infernizar a vida mansa, calma e pacífica do rei selvagem. Mas o que faz ele ? Apenas chacoalha sua grande cabeça, sacoleja seu rabo com ponta peluda, afasta temporariamente as moscas ao seu redor, para, assim, atingir momentânea paz.
Quando está em bando, com seus iguais, o leão cansado já não os vê como rivais, já não disputa com ferocidade a demarcação de espaços, já não se importa mais com disputas sanguinárias por fêmeas e provisões, seja lá quais forem.
Ao contrário, um estranho e novo clima de confraternização se instala. Todos eles não precisam sequer rugir, sequer empreender quaisquer esforços para atingirem uma compreensão mútua. Entreolham-se, simplesmente e, como em um passe de mágica, tudo já está entendido e nada mais é necessário.
Enganam-se de forma cabal e concreta aqueles que pensam que pelo fato de estar exausto, o leão cansado se tornou inofensivo. Uma vez rei e uma vez feroz, a realeza e a ferocidade reacendem em questão de segundos. Não mais do que um estímulo é necessário para isso: provoque-os e será capaz de experimentar a selvageria incontrolável daqueles que têm dentro de si o mais puro sumo da natureza em seu estado mais viril.
Experiências que se repetiram ao longo dos anos sugaram a juventude inocente dos leões. O espólio da juventude perdida é a parca sabedoria.
As lutas constantes e as derrotas cotidianas, permeadas de algumas vitórias, drenaram suas forças ao máximo. O despojo do cansaço é troféu: gasta força necessária apenas naquilo que interessa, naquilo que vale.
A perspicácia de um verdadeiro leão cansado reside exatamente naquilo que nos é mais óbvio: não force a natureza, as coisas têm seu tempo.
Crítica justa, porém, e motivo de tristeza entre os exauridos leões, é que aquele amargor de fel apodrecido não abandonará jamais vossas bocas.
(para os trintões que compartilham e criaram a idéia, naquela noite de lamentos e risadas)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Barack Hussein Obama

Então tá ! Animais políticos que somos, vivendo na cidade (e não na polis) , rendo-me ao fato mais importante da semana e, talvez, dos últimos tempos.
Passadas algumas horas da euforia provocada pela vitória de Barack Obama ao cargo de presidente dos Estados Unidos da América, não resisto a um esboço de breve análise.
É fato de importância histórica inegável que um negro, pouco mais de quarenta anos depois das lutas de emancipação e pelos direitos civis nos EUA, tenha alcançado o mais alto posto político do país e, em escala global, dado o poder econômico, cultural, político e militar, o equivalente hodierno a um Cesar.
Mas também é fato que, paralelo a essa constatação, a sociedade norte-americana permanece inegavelmente racista: assim como no Brasil, a grande maioria da população carcerária é de negros, sendo que lá, ao contrário daqui, os negros são minoria na totalidade da população.
É sabido que muitos têm rotulado Barack Obama como um presidente "pós-racial", fruto de uma época em que a raça não teria peso importante, não sendo mais parâmetro para aferição de competências de um homem político.
No entanto, é igualmente sabido que a extrema maioria dos negros norte-americanos votaram em Obama. Não só negros, evidentemente, mas se um candidato mobilizou o povo negro dos EUA, foi Obama. Além do mais, quem assistiu a algumas imagens das horas seguintes à vitória democrata, pôde constatar os incontáveis rostos banhados em lágrimas. Todos eles de negros !
Ainda sobre o curioso e obscuro fenômeno chamado de pós-racial, sabe-se que durante toda a longa campanha do candidato Obama, evitou-se ao máximo o pronunciamento público de negros conhecidos, em apoio à sua candidatura, pois temia-se enormemente a vinculação oficial de Obama como o candidato dos negros. Visava-se, assim, ao voto dos brancos norte-americanos.
Ou você viu alguma manifestação pública de apoio - durante a campanha - por pessoas com largo poder de influência na mídia, tais como atores e atrizes negros de Hollywood, músicos (especialmente os rappers), esportistas e afins ?
Lembremos que durante a campanha para derrotar George W. Bush em sua reeleição, em 2004, diversos roqueiros - brancos - se uniram em shows que atravessaram os EUA (Rock for Vote), para pedirem que os jovens - brancos - saíssem de casa para votar em John Kerry, então candidato democrata. Será que o povinho do rock, à época, preocupou-se em não vincular Kerry a uma escolha dos brancos ? Evidente que não ! Um branco vencer a eleição para presidente é fato comezinho.
Chama a atenção também o caráter messiânico com que se temperou a reação pública - não só norte-americana, mas global - em razão da vitória de Obama. Yes, we can ! se repetiu infinitamente em quase todos os países do mundo, a ponto de minha mãe repetir o bordão enquanto acariciava a cebola com sua faca.
Também nesse ponto não há exatamente uma novidade. Quem se recorda da vitória de Lula, em sua primeira eleição, experimentou - com as devidas mudanças - sensação semelhante. Há uma descarga natural de sonhos, expectativas e projeções direcionada ao símbolo do poder mundial: o presidente dos EUA. Quando esse se mostra, ainda, sob a pele de homem democrático (multilateral, como dizem os jornais hoje), equilibrado, ponderado e advindo de uma minoria, então o fenômeno é razoavelmente compreendido.
No entanto, não nos enganemos. O perfil sedutor e magnético esbanjado por Obama tem muito do mais simples contraponto que o mesmo representa em relação ao velho, ao desgastado e ao atualmente odiado George W. Bush. Oito anos de Bush - que conseguiu ser mais odiado no mundo inteiro do que o próprio Bin Laden - facilitaram a exploração desse perfil por Obama.
Política não se faz em discursos. Assim como em tudo, são os atos que definirão o perfil e o estilo de Obama. É em meio a uma provocação de algum país qualquer, a um atentado com bombas, na imposição de democracias a países que não a solicitaram, é ao ponderar questões cruciais que simbolizam o ódio mundial aos EUA, tais como o uso da tortura como método oficial de investigação pela CIA, as prisões em Abu Ghraib e em território cubano, o próprio bloqueio comercial de décadas a Cuba, a política bélica sem limites, o total desmantelamenteo do papel político da ONU provocado pelo conceito de guerra preventiva adotada por Washington, o desprezo pelos temas ambientais, entre tantos outros.
É nesse contexto e em tais assuntos que se afirmará o real perfil de Obama, sendo que até lá viveremos - ou viverão, se me for permitida alguma dose de lucidez - um verdadeiro conto de fadas, tendo como elementos essenciais o homem visto como um Messias e um povo branco expiado parcialmente de sua culpa racista.
Mas, no fim das contas, sempre vale um sábio lembrete: um presidente dos EUA é, sempre, um eterno filho da puta.
É condição sine qua non para o cargo.