quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O Célio

Célio passava sabão nos cabelos castanho escuros de modo que os mesmos pudessem ficar em pé indefinidamente. Inspirado em um suposto grupo de amigos que jamais me foi apresentado, Célio tinha apenas dois orgulhos: intitular-se como punk para aquele bando de garotos e garotas que era obrigado a ver diariamente - eu entre eles - e aterrorizar todas as meninas do colégio mediante técnica de inversão de pálpebras dos olhos, o que em questão de segundos provocava repulsa coletiva à sua pessoa.

Nada tinha a ver Célio com a minha vida de bom garoto. Ao menos naquela época eu era um menino que dormia rigorosamente às nove horas da noite, logo após o Jornal Nacional, e não pregava meus olhos sem que cumprisse o ritual noturno: eu e meu irmão rezávamos conduzidos pela missa particular de minha mãe, com as mãos em forma de concha voltadas para cima.

No dia seguinte, lá vinha ele: Célio. Corpo esquálido e desajeitado, rosto triangular e magro, boca na qual mal se percebiam os lábios tímidos. A figura dele remete à imagem de Sid Vicious, mas não há dúvida de que tal imagem se contamina de alguma romantização.

Com seus olhos oblíquos e atentos e suas conversas dissonantes de meu mundo, rapidamente Célio se tornou meu primeiro amigo repetente.

Estávamos na quarta série e ele havia repetido de ano. Sendo um ano mais velho do que todos nós e já com esse currículo diferenciado, Célio era - ainda que subrepticiamente - um certo líder de bando. Eu ? Não sei porque eu fui erigido a uma condição que se assemelhava a um secretário-geral: preparava o palco, chamava o público e também tinha meus momentos de brilho.

Não sei o que Célio e eu fizemos exatamente. Mas o fato é que essa amizade bandida me fazia bem.
As rezas noturnas à noite com minha mãe, passaram a servir de munição para as missas cômicas que eu celebrava diariamente perante meus colegas de escola. Falava em tom sacerdotal, apontava a cada um dos meus amigos e bradava "irmãaaaos".... como súplica a sua atenção.

Célio costumava encerrar essas missas com seu espetáculo particular de inversão de pálpebras. Nada a ver com manifestações demoníacas, mas tão somente porque eu já cansara a platéia com meu humor esforçado.

Jamais me esqueço de Célio. A gente não tinha nada a ver um com o outro, mas algo dentro de mim era despertado por aquele repetente.

Apesar disso, eu continuava sendo um bom garoto, disso não se duvide. Dividíamos a mesma sala, parceiros de carteira, coisa de ficar lado a lado mesmo, dividindo as borrachas perfumadas e compartilhando os apontadores de lápis em forma de capacete.

Mas foi numa aula do Prof. Jesuíno que nitidamente nossas naturezas se manifestaram de forma visceral e anunciaram que aquela amizade não prosseguiria além daquele ano.

Naquela aula eu só tinha uma preocupação: ganhar o livro O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry que seria dado pelo professor ao aluno com as melhores notas do bimestre. Eu era bom aluno e tinha boas notas - reflexo do militarismo estudantil de minha mãe - e tinha plena convicção de que o livro era absolutamente meu.

O Célio eu me lembro que mal sabia ler e estava se lixando para o livro, tanto é que ao ouvir minha revolta com a derrota na competição - o livro havia sido dado a um garoto de voz fina que a gente odiava - me olhou fixamente, fez desaparecer seus lábios já inexistentes com uma mordida e passou a cantar uma música muito conhecida na época, tempos de Rock in Rio, intercalando as frases da música com socos muito fortes na parede ao lado da carteira.

Desde aquele dia eu bem compreendi que era diferente de Célio.
Em casa eu chorei diante da perda do livro e me lembrava dos duros socos dados por ele contra a parede. Lembrei também que no futebol, Célio era rei naquilo que ninguém queria ser: goleiro. Não havia receio ! A cada bomba que vinha das nossas pernaças ele não saia da frente, se jogava contra a bola ao contrário de esperá-la vir em sua direção.

Socos na parede, hematomas no corpo, prazer naquilo que todos rejeitavam, falta de medo de boladas doloridas e inversão de pálpebras: esse era Célio, um verdadeiro masoquista.

Depois, ao fim do ano, a gente nem forçou nada. Célio repetiu novamente e saiu do colégio. Nunca mais o vi e nem tive qualquer tipo de notícia. Dali para a frente eu fiquei amigo de muita gente repetente, bem me lembro.

Essa lembrança de uma época única, o colégio, com todas as suas pequenas glórias e tragédias, permanece tão vívida em razão de sua naturalidade.
Nada tendo a ver um com o outro, Célio e eu tornamo-nos bons amigos por um ano. Sem forçar, sem preparar, sem se esforçar. Amigos, naturalmente.

Não é assim que acontecem as coisas boas da nossa vida ?

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

lógica elementar: 8 - 80 - 8

A gente sempre começa com um silogismo aristotélico:

Qualquer sujeito é tolo.
Eu sou sujeito.
Logo, eu sou um sujeito tolo.

O que torna válido um silogismo é que a conclusão deve obedecer as premissas, sob pena de ser um silogismo falso, como esse que segue abaixo:

O amor submete o homem.
Já a paixão o liberta.
Todo homem submetido
é um homem verdadeiramente idiota.

O desacordo da conclusão com as premissas, nesse caso, é que invalida o silogismo.

Ainda que as premissas sejam verdadeiras, tais como a submissão e a libertação provocadas pelo amor e pela paixão, delas não se segue necessariamente que todo homem submetido é verdadeiramente idiota.

E mais, há um acerto intrínseco na afirmação da idiotice do homem e na submissão do amor, mas como um não leva ao outro, então não vale o silogismo.

...

Em certas ocasiões a vida dá tapa na cara. Gostariamos mesmo de viver em meio a silogismos vários, com premissas facilmente manipuláveis e conclusões das mais saudáveis.

Endossaríamos mesmo assim os discursos exaltando as imprevisibilidades da vida, mas apenas naquilo que nos surpreende positivamente. Para o que nos provoca o mal, bastaria uma simples manipulação das causas para alteração da conclusão.

...

Pensava nisso tudo numa triste noite.

Um caminhão havia me atropelado e o motorista sequer parou para me prestar socorro. Sai das ferragens retorcidas assemelhadas a um polvo de mil braços a me prender no fundo do mar, até o momento em que daria a última, fatal e profunda inspiração.

Achando que era ar, respirei água e me propiciei a morte. Conclusão não válida.

A minha premissa era sair vivo das ferragens. Vivo. Cambaleante ferido sangrando mas corpo vivo.

Em uma só noite a gente varia. Mas que coisa terrível !

Um demônio apertou minha nuca como se quisesse esmagá-la entre seus dedos. Deitou sobre mim seu cobertor malévolo. Um corpo preso e pesado sustentando uma cabeça de mil quilos a vagar pela cidade maldita. Pensamentos obscuros me traziam o horror da existência e a obsessão da morte se mostrava verdadeira.

Já não disseram que filosofar nada mais é do que se preparar para morrer ?

...

Como já disse, em uma só noite a gente varia.

Leveza com sorrisos ! Um brinde a todos vocês, meus queridos amigos !

Por vocês eu bebo nessa noite e sou capaz de contar anedotas e histórias que fariam todos vocês rirem. Deixem-me falar e deixem-me sorrir sem fim.

Por vocês é que - naquela adorável noite - senti a leveza dos mais delicados e suaves passos de uma bailarina por quem me apaixonei na infância.

E aquela bela garota que exaltava Kant exaltava muito mais do que Kant.

Estariam meus olhos famintos denunciando minha etérea felicidade de éter ?

Banharam-me com calor humano sem o saber. Que importa ?

...

Numa só noite a gente varia.

A noite tem uma sacola de litros infinitos e dentro desses litros cabe de tudo. Enquanto alguém sorri tem um outro que chora.

Quem é aqui é capaz de sentir a dor do outro ?

Gélido como nada semelhante. Um corredor de hospital é só um corredor que leva a outros lugares. Mas nele se escondem artifícios e paredes impregnadas de morte.

Não importa quem se salvou ou quem se deixou levar pela elegante e suave condução da morte em seu baile. No baile da dona morte, os únicos convidados são ela e o dono da vida. Cada medo é uma valsa.

Um corredor é apenas um lugar que leva para outros lugares, mas quando as paredes, as esquinas, o chão e o teto estão todos impregnados de morte consumada ou evitada, a gente sabe bem que está em domínio alheio. Comportemo-nos, pois, como educados hóspedes que sabem se portar em cada um dos diferentes lugares.

Ali, naquele corredor, ela - a morte - é soberana. Todos eles se vestem impecavelmente de branco apenas para se esquecerem disso.

...

Submetidos a contingências várias vamos nos fantasiando por aí: do mais dócil cavalheiro que tem boas histórias a contar, munido de seu belo sorriso nos lábios, até o pesado rapaz que enxerga a morte no mais doce morango enfileirado.

Quem é que está preparado para isso ?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Aos 16, ela desejava que todos os bancos, todas as lojas, todas as empresas, todas as universidades, todas as igrejas e todas as famílias explodissem espalhando seus fragmentos pelo campo de batalha.

Aos 18, ela resolveu se organizar em coletivos, experimentar a união dos trabalhadores e dos estudantes. Ela queria se auto-gestionar, como sempre ouviu e repetiu. Enfastiou-se de colar lambe-lambes pelos postes e paredes da cidade.

Aos 24 ela saiu da universidade e já trabalhava. Ainda nutria ódio por quase tudo mas já era tolerante o suficiente para entender que a derrocada de um exército não começava com a morte do general.

Aos 30 nasceu seu filho e, com ele, se viu obrigada a deixar certos egoísmos de lado e pensar em um futuro minimamente digno e humano para si, para seu filho e para sua família. Mas a sua moral, pensava ela, estaria sob eterna guarida.

Aos 36 já estava completamente lambuzada pelo óleo que permite que as engrenagens das máquinas - todas elas - possam funcionar com o menor desgaste possível.

Aos 41 se surpreendeu quando abriu os jornais e leu que grande parte das empresas que tanto odiara aos 16, como Honda, General Motors e Ford, estavam na iminência de uma quebra definitiva.

Ainda sob os 41, chocou-se com gravidade ante a constatação de que não pensava mais nos grandes chefes das grandes empresas. Mas pensava em cada uma das famílias da grande massa de desempregados e seus filhos, vítimas da falência geral.

Aos 50, montou sua primeira árvore de Natal. Com a ajuda de seu filho.

Aos 57 se horrorizou quando após reencontro com antiga colega de universidade, teve de assumir para si mesma que o úlimo livro lido tinha sido o "Pensar é transgredir", de Lya Luft.

Muitos anos atrás era Voltaire que a encantava.

Aos 64, adoeceu.

Aos 67 morreu de câncer. E homenagens fúnebres ao melhor estilo cristão lhe foram prestadas.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Meu primeiro encontro com Deus


"Visceral como a raiva, nada mais é, dado que a raiva drena a seiva da vida e da morte. Quando germinada de uma mentira, quando não furiosamente extirpada, transforma-se em monstro incontrolável em incessante procriação diária." W.M.R.

Naqueles tempos, havia uma espécie de erva daninha que já me era familiar desde a mais tenra infância.
Na praça defronte a minha casa pude a conhecer com suficiente profundidade, sendo que jamais havia me passado pela cabeça, até então, que uma simples e pequena planta, de caule quebradiço e raízes facilmente arrancáveis, pudesse carregar nome tão maldito como aquele.
Elas - as daninhas ervas - e isso era fato comprovado, multiplicavam-se flagrante e geometricamente por toda a pequena vastidão de terra que era a praça, nela se estendendo como lençol verde e homogêneo deitado deliberadamente sobre sua extensão.
Não era muito conveniente, também nesses tempos, os esforços diários para se extipar a praga que se chamou de daninha. Aprendi com meu pai que o pinheiro que acabávamos de plantar poderia não suceder na vida caso aquela profusão que era o lençol verde lograsse vitória na batalha cotidiana pelo espaço, pela água, pelos nutrientes e pela luz.
Assim é que a lembrança desses delicados tempos me impõe esforço hercúleo: a dificuldade para rememorá-los equivale à grande tarefa que consistia em preservar um espaço livre das ervas que prejudicavam a vida.
Mas no frescor da minha vida isso não era assim tão difícil. A tarefa de extipar as daninhadoras para preservar a vida do pinheiro me era extremamente gratificante. A gente - meu pai e eu - se esforçava unicamente para que pudessemos ver o florescimento natural da vida do pinheiro e nosso esforço era diariamente recompensado pela espera.
A gente arrancava mas também esperava. E quando esperavamos, tínhamos nossa recompensa.
Desde cedo constatei, por obra de meu pai, que bastaria esperar, após trabalhar, para que a alegria acontecesse.
Assim era com o pinheiro e assim deveria ser com as outras coisas. Não importava que para crescer, era necessário matar. Tal conta não se formulava nessa época: só com a morte das daninhas é que conseguiríamos a vida.
Por outro motivo, existiu um certo dia em que eu também tive de esperar. Dessa vez me foi exigido algo muito mais complicado e para o qual meu pai não havia me preparado diretamente. Eu já havia esperado outras vezes em tempos anteriores, e já havia insculpido em meu espírito virgem a convicção de que o esforço que precedia a espera era recompensador.
Talvez por isso, naquele dia de céu azul, um dia que era comum para o mundo inteiro, mas que se deitou sobre mim como sombra malévola de ilusão adquirida e perdida, a coisa não se sucedeu de forma igual.
Naquele dia ... dia que me estremece os lábios e que faz suar com largas gotas meus olhos riscados por ondas vermelhas ... eu também esperei pacientemente. Também me regozijava pela minha paciência aprendida, do pinheiro que merecia viver à erva que merecia morrer, eu esperava aquele momento em que sorriria pela evidência da vitória: a vida.
Não sei muito bem como ocorreu, diante da distância dos anos e da necessária couraça com a qual me vesti.
Sei apenas que a coisa toda aconteceu exatamente da mesma forma como eu fazia com as ervas daninhas: minhas mãos bastavam para arrancar convictamente suas raízes e seu caule. Em segundos, ela já não mais vivia. Em questão de segundos também meu pai foi tirado de alguém que mal lhe conheceu. Uma dor no braço esquerdo que se estendeu para um coração parado e que se abateu sobre uma família de emigrantes do norte.
Na nossa moira, os fios da vida haviam sido cortados sem hesitação.
Mas mesmo assim eu esperei, exatamente da mesma forma como havia aprendido. Acho que havia sim alguma boa intenção, alguma tentativa de remediar essa tragédia particular, a justificar as palavras daquela senhora que me consolava na minha pueril ignorância de quem não compreendia mas sentia o peso de uma morte que ainda então não lhe era lícito avaliar.
Há outro motivo para terem me pedido para esperar ? Corri para o lugar mais aberto da casa, o lugar no qual eu poderia ter a mais ampla visão do céu azul que mostrava apenas uma infinita parcela de sua vastidão. De lá eu poderia assistir ao retorno de meu pai, envolto em nuvens, rodeado de Deus e de santos, trazendo um pequeno pinheiro em suas mãos ele me daria um abraço, um abraço diferente de todos os outros que já havia recebido, dado que seria o primeiro abraço pós-morte dado nos braços de seu filho que sentia sua estranha falta, sua cotidiana lágrima.
A cada naco de nuvem que se aparentava a um pequeno borrão, até às mais complexas formas de navios e cabeças que passavam diante de meus olhos, eu esperava com paciência infinita. Passado um bom pedaço de tempo, confirmei que as nuvens - todas elas - haviam se esquecido de trazer meu pai de volta.
Nenhuma delas foi capaz de atender a promessa que havia sido feita para mim, por aquela senhora de coração bom mas de ignorância ímpar quanto ao efeito que uma simples espera provocaria em um ser habituado a esperar.
Deus não agiu e meu pai desapareceu para sempre. A promessa da ingênua senhora se descumpriu e isso ninguém é capaz de apagar.
Dias depois fui capaz de chorar pela promessa irreal, com minhas mãos segurando aquela pequena gravata envolta em discreta embalagem de cartolina azul. Presente que eu não esperei mais para dar, diante da proximidade da lata de lixo.
Naquele triste dia de nuvens bailando pelo céu azul, de promessa descumprida, de retorno irrealizado, de espera paciente, tive meu primeiro encontro com Deus.
Para nunca mais desejá-lo na vida.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Vicky Cristina Barcelona

A história do último filme de Woody Allen (Vicky Cristina Barcelona, 2008, Estados Unidos/Espanha) é basicamente a seguinte: duas amigas norte-americanas vão passar férias em Barcelona, uma delas, Vicky, estudante da cultura catalã e prestes a se casar, e a outra, Cristina, solteira, com um curta-metragem irrelevante em sua carreira de cineasta e atriz.
Embora amigas e compartilhando opiniões comuns, ambas discordam quando o assunto em pauta é o amor: para Vicky nada melhor do que a segurança de um casamento com um bom homem, responsável e educado, tal como seu noivo. Já para Cristina, nada de certezas sobre suas vontades positivas, a não ser sua certeza negativa de saber o que não almeja para sua própria vida.
Chegando em Barcelona, onde se hospedam na casa de conhecidos, se inicia a peregrinação pelos pontos turísticos e históricos da bela cidade, inclusive com visitas a exposições de arte, até que em uma certa noite, ao jantarem em um restaurante, são abordadas por um homem desconhecido, bastante galanteador, que as convida clara e abertamente para uma viagem a Oviedo, onde poderão se conhecer melhor, beber vinho e fazer sexo, em suma, uma viagem para enjoy the life.
Com alguma relutância de Vicky, as duas partem para Oviedo em companhia desse então desconhecido, chamado Juan Antonio, pintor e artista plástico, filho de um poeta que não divulga suas poesias e recém-separado de sua ex-esposa, Maria Elena, também pintora.
O que se segue é que Juan Antonio sucessivamente conquista Cristina, depois Vicky e após as conquistas, retoma a relação com sua ex-esposa Maria Elena. Retoma a tal ponto que esta, após tentativa de suicídio, passa a viver sob o mesmo teto que o ex-marido e sua já companheira Cristina, surgindo então, após período de adaptação e estranhamento recíproco, um trio amoroso forjado em descobertas amorosas e sexuais, que termina com o retorno de Cristina e Vicky aos Estados Unidos.
Com as escusas da sinopse com gosto amargo de Folha de São Paulo, o novo filme de Woody Allen é sim interessante. Em geral, aborda os assuntos cotidianos em relação aos quais gastamos boa parte de nossas vidas tentando compreender: relacionamentos amorosos, diferenças ideológicas e culturais, a construção de si mesmo mediante projetos futuros e as renúncias que inevitavelmente devem ser feitas na vida.
Como já é praxe na carreira de Woody Allen, é o amor que desencadeia tanto os sonhos como as frustrações das personagens, dando vazão ao tipo categórico da neurótica, da romântica, da idealista, da pragmática e demais que habitualmente compõem o universo de Allen.
Até aí não há nada de extraordinário, pois é inegável que o universo humano, com suas dores e suas alegrias, é fonte inesgotável de reflexões e ironias, não residindo aqui o que julgo ser o ponto frágil do filme, uma vez que as artes em geral não se furtaram nunca de nos apresentar o humano, mesmo quando mostrado em tintas e palavras heróicas.
O que realmente é o ponto fraco em Vicky, Cristina, Barcelona, é que o cotidiano humano tenha sido mostrado a partir de arquétipos que não ultrapassaram o lugar comum, não se libertando disso nem mesmo a própria cidade - Barcelona - na qual se passa a história.
Assim é que duas das principais personagens, Vicky e Cristina, mulheres norte-americanas advindas do mundo protestante e pragmático que são os Estados Unidos, ainda que de sua ala mais liberal (Nova York), experimentam todos os dilemas amorosos, as tentações da carne e da alma - escolhas nas quais se projetam seus valores - na cidade, evidentemente latina, de Barcelona.
Ora, a chata expressão caliente tem muito do que se diz ser a alma do latino: emotivo, idealista, movido a paixões. Arrebatador, muitas vezes. Para isso então, imponha-se Barcelona!
Woody Allen se utiliza disso para nos introduzir o mais perfeito chavão do personagem latino: Juan Antonio Gonzales, sujeito com cara de cavalo (como me disseram), mas artista (entenda a ironia...), sedutor ao extremo, cara de pau, filho de poeta excêntrico, que leva uma vida boêmia e aparentemente sem preocupações materiais, coisas que apenas europeu nato sabe o que é.
Falamos aqui do mais típico e sedutor galã latino, que vê nas pobres pragmáticas norte-americanas, duas presas fáceis para seu belo discurso.
Some-se a isso outros exemplos de lugar comum: a oposição artista X executivo, aquele dotado de sensibilidade e este de monstruosidade. Aquele como paradigma de um espírito livre e este como o próprio dinossauro do conservadorismo.
Ou então, o artifício do chamado amor livre entre Juan Antonio, Cristina e Maria Elena, com direito inclusive a discurso padrão de Cristina, já então descolada e modernosa. Evidentemente não se trata de afirmar que o amor livre não possa de fato libertar de certos entraves, mas quando o mesmo é colocado em contraste com o amor monogâmico apresentado praticamente como uma relação entre idiotas (Vicky e seu noivo), assume um tom maniqueísta que remete - inevitavelmente - aos romances panfletários de Roberto Freire.
Assim como nem toda relação monogâmica é uma relação entre idiotas, embora muitas o sejam, nem toda relação amorosa livre é uma relação de fato libertadora. Perde muito em profundidade e seriedade a história, ao fazer tão previsível contraposição de mundos: artista-descolado-trepo com todo mundo X casal chato e burro que quer uma casa high tech e um casamento romântico na Espanha.
É natural que um filme limite a abordagem psicológica das personagens. Não há muito tempo para tais nuances. Mas os maniqueismos presentes no filme de Woody Allen quase o contaminam por completo, não chegando a tanto diante das pequenas e constantes reviravoltas no desenrolar da história, assim como na constatação final vivida por Cristina: não se preenche a existência do eu eternamente incompleto e insatisfeito no outro.
De toda forma, ao expor os dilemas humanos tais como a exigência da afirmação de valores mediante as escolhas cotidianas, o conflito entre diferentes moralidades e a busca pela construção de si mesmo (sobretudo Cristina), o filme é um que vale a pena ser assistido.
Lamento apenas é que as ambiguidades tão tipicamente humanas - não sendo monopólio de artistas ou executivos - tenham sido deixadas de lado em nome dos lugares comuns que facilitam - mas emburrecem - a história.




sexta-feira, 14 de novembro de 2008

leão cansado

Sabe o que é, o que sente e como se comporta um leão cansado ?
O amargor do fel apodrecido que preenche sua boca repleta de dentes afiados por tantas presas devoradas ao longo dos anos, moldaram - definitivamente - seu caráter.
As carcaças das presas - curiosa e simultaneamente vítimas e algozes - deixaram marcas por todo o seu corpo e, de seu estômago, de seu intestino, de todo e qualquer órgão que lhe compõe, é possível identificar cada rastro, cada marca, que deixaram impressos ao deslizar suavemente a partir do colchão áspero e úmido da grande língua.
Um leão cansado é assim: já não mais ataca, já não mais parte em busca da caça. Talvez por excesso de orgulho, talvez simplesmente por já ter desistido de antemão. Não importa. Apenas e tão somente aguarda que a presa - seja ela qual for - se aproxime de seu raio de ação.
Não subestime a expressão constante de sono e preguiça, tampouco o corpo estendido sobre a relva ou sobre o asfalto: é no descanso que se elaboram os melhores planos, as melhores caças.
Note que inúmeras, centenas e milhares de infinitas pequenas moscas rodeiam incessantemente a cabeça de um leão cansado. Pretendem elas, e disso não há a menor dúvida, infernizar a vida mansa, calma e pacífica do rei selvagem. Mas o que faz ele ? Apenas chacoalha sua grande cabeça, sacoleja seu rabo com ponta peluda, afasta temporariamente as moscas ao seu redor, para, assim, atingir momentânea paz.
Quando está em bando, com seus iguais, o leão cansado já não os vê como rivais, já não disputa com ferocidade a demarcação de espaços, já não se importa mais com disputas sanguinárias por fêmeas e provisões, seja lá quais forem.
Ao contrário, um estranho e novo clima de confraternização se instala. Todos eles não precisam sequer rugir, sequer empreender quaisquer esforços para atingirem uma compreensão mútua. Entreolham-se, simplesmente e, como em um passe de mágica, tudo já está entendido e nada mais é necessário.
Enganam-se de forma cabal e concreta aqueles que pensam que pelo fato de estar exausto, o leão cansado se tornou inofensivo. Uma vez rei e uma vez feroz, a realeza e a ferocidade reacendem em questão de segundos. Não mais do que um estímulo é necessário para isso: provoque-os e será capaz de experimentar a selvageria incontrolável daqueles que têm dentro de si o mais puro sumo da natureza em seu estado mais viril.
Experiências que se repetiram ao longo dos anos sugaram a juventude inocente dos leões. O espólio da juventude perdida é a parca sabedoria.
As lutas constantes e as derrotas cotidianas, permeadas de algumas vitórias, drenaram suas forças ao máximo. O despojo do cansaço é troféu: gasta força necessária apenas naquilo que interessa, naquilo que vale.
A perspicácia de um verdadeiro leão cansado reside exatamente naquilo que nos é mais óbvio: não force a natureza, as coisas têm seu tempo.
Crítica justa, porém, e motivo de tristeza entre os exauridos leões, é que aquele amargor de fel apodrecido não abandonará jamais vossas bocas.
(para os trintões que compartilham e criaram a idéia, naquela noite de lamentos e risadas)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Barack Hussein Obama

Então tá ! Animais políticos que somos, vivendo na cidade (e não na polis) , rendo-me ao fato mais importante da semana e, talvez, dos últimos tempos.
Passadas algumas horas da euforia provocada pela vitória de Barack Obama ao cargo de presidente dos Estados Unidos da América, não resisto a um esboço de breve análise.
É fato de importância histórica inegável que um negro, pouco mais de quarenta anos depois das lutas de emancipação e pelos direitos civis nos EUA, tenha alcançado o mais alto posto político do país e, em escala global, dado o poder econômico, cultural, político e militar, o equivalente hodierno a um Cesar.
Mas também é fato que, paralelo a essa constatação, a sociedade norte-americana permanece inegavelmente racista: assim como no Brasil, a grande maioria da população carcerária é de negros, sendo que lá, ao contrário daqui, os negros são minoria na totalidade da população.
É sabido que muitos têm rotulado Barack Obama como um presidente "pós-racial", fruto de uma época em que a raça não teria peso importante, não sendo mais parâmetro para aferição de competências de um homem político.
No entanto, é igualmente sabido que a extrema maioria dos negros norte-americanos votaram em Obama. Não só negros, evidentemente, mas se um candidato mobilizou o povo negro dos EUA, foi Obama. Além do mais, quem assistiu a algumas imagens das horas seguintes à vitória democrata, pôde constatar os incontáveis rostos banhados em lágrimas. Todos eles de negros !
Ainda sobre o curioso e obscuro fenômeno chamado de pós-racial, sabe-se que durante toda a longa campanha do candidato Obama, evitou-se ao máximo o pronunciamento público de negros conhecidos, em apoio à sua candidatura, pois temia-se enormemente a vinculação oficial de Obama como o candidato dos negros. Visava-se, assim, ao voto dos brancos norte-americanos.
Ou você viu alguma manifestação pública de apoio - durante a campanha - por pessoas com largo poder de influência na mídia, tais como atores e atrizes negros de Hollywood, músicos (especialmente os rappers), esportistas e afins ?
Lembremos que durante a campanha para derrotar George W. Bush em sua reeleição, em 2004, diversos roqueiros - brancos - se uniram em shows que atravessaram os EUA (Rock for Vote), para pedirem que os jovens - brancos - saíssem de casa para votar em John Kerry, então candidato democrata. Será que o povinho do rock, à época, preocupou-se em não vincular Kerry a uma escolha dos brancos ? Evidente que não ! Um branco vencer a eleição para presidente é fato comezinho.
Chama a atenção também o caráter messiânico com que se temperou a reação pública - não só norte-americana, mas global - em razão da vitória de Obama. Yes, we can ! se repetiu infinitamente em quase todos os países do mundo, a ponto de minha mãe repetir o bordão enquanto acariciava a cebola com sua faca.
Também nesse ponto não há exatamente uma novidade. Quem se recorda da vitória de Lula, em sua primeira eleição, experimentou - com as devidas mudanças - sensação semelhante. Há uma descarga natural de sonhos, expectativas e projeções direcionada ao símbolo do poder mundial: o presidente dos EUA. Quando esse se mostra, ainda, sob a pele de homem democrático (multilateral, como dizem os jornais hoje), equilibrado, ponderado e advindo de uma minoria, então o fenômeno é razoavelmente compreendido.
No entanto, não nos enganemos. O perfil sedutor e magnético esbanjado por Obama tem muito do mais simples contraponto que o mesmo representa em relação ao velho, ao desgastado e ao atualmente odiado George W. Bush. Oito anos de Bush - que conseguiu ser mais odiado no mundo inteiro do que o próprio Bin Laden - facilitaram a exploração desse perfil por Obama.
Política não se faz em discursos. Assim como em tudo, são os atos que definirão o perfil e o estilo de Obama. É em meio a uma provocação de algum país qualquer, a um atentado com bombas, na imposição de democracias a países que não a solicitaram, é ao ponderar questões cruciais que simbolizam o ódio mundial aos EUA, tais como o uso da tortura como método oficial de investigação pela CIA, as prisões em Abu Ghraib e em território cubano, o próprio bloqueio comercial de décadas a Cuba, a política bélica sem limites, o total desmantelamenteo do papel político da ONU provocado pelo conceito de guerra preventiva adotada por Washington, o desprezo pelos temas ambientais, entre tantos outros.
É nesse contexto e em tais assuntos que se afirmará o real perfil de Obama, sendo que até lá viveremos - ou viverão, se me for permitida alguma dose de lucidez - um verdadeiro conto de fadas, tendo como elementos essenciais o homem visto como um Messias e um povo branco expiado parcialmente de sua culpa racista.
Mas, no fim das contas, sempre vale um sábio lembrete: um presidente dos EUA é, sempre, um eterno filho da puta.
É condição sine qua non para o cargo.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

i want to believe

Budistas acreditam no desapego.
Comunistas acreditam na história - ente autônomo dotado de vontade própria.
Cristãos acreditam na salvação eterna. E nos pecados.
Racionais acreditam na razão.
Emotivos, por sua vez, na autenticidade e espontaneidade das emoções.
Empregados acreditam em bons salários.
Advogados e juízes acreditam na justiça. Ou ao menos se contentam com a juridicidade da mesma.
Empresários acreditam em si mesmos.
Políticos profissionais acreditam no bem público.
Filósofos acreditam na sabedoria. Ainda que sem o amor.
Músicos acreditam serem capazes de mudar o mundo.
Mas pintores, poetas e escultores, acreditam poder embelezá-lo.
Professores acreditam na educação.
Jornalistas acreditam ser possível alguma comunicação.
Médicos acreditam na saúde.
Coveiros acreditam na morte.
Economistas acreditam piamente em previsões.
Aikidokas acreditam em harmonia.
Assim também os vegetarianos.
Psicólogos e psicanalistas acreditam enxergar luz nas sombras.
Espiritualistas acreditam em transcendências.
Anarquistas acreditam numa - estranha - boa natureza humana.
Já os ecologistas, em uma natureza boa.
Niilistas acreditam na impossibilidade.
Escritores acreditam que algo deve ser dito.
Amantes acreditam na entrega.
E uma boa maioria acredita que tudo está pré-determinado pelos desígnios do além.
Inexoravelmente das crenças nos alimentamos. Um verdadeiro massacre.
Até que um vendaval - seja ela humano ou natural - lambe as crenças e as faz desaparecer subitamente.
Tornamo-nos então céticos.
Para passarmos a acreditar nas dúvidas.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Senta-se.

E suado, escreve, apaga, corrige, relê, interpreta, reescreve, ruboriza, apaga, escreve, odeia, desiste, retoma, café, suor, coceira, tiques, alonga, desiste. Abre o botão da camisa e assopra seu peito, na vã esperança de palavras lhe dominarem os dedos. Quer apenas alívio.

Num só ato contínuo, que se inicia no desespero de nada conseguir escrever que seja relevante...ou melhor... nada de relevâncias !
Algo que seja simplesmente afirmação concreta de um querer dizer que não se manifesta, algo que atravesse a constatação que sangra a obviedade de que embora uma infinidade de coisas precisem ser ditas - nada efetivamente é dito - , não vê outra envergonhada e ultrajante solução que não seja reconhecer que muitas vezes, é melhor desistir de antemão a ter de suportar o angustiante sentimento de alguém que - tal como um intestino repleto de bolo fecal dos dias passados que se contenta apenas com poucos gases borrifados no ar - quer dizer e não encontra meios para tanto.
Melhor seria ser poeta.
Poeta é escravo das palavras e um bom escravo sempre cumpre rigorosamente seu mister.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

sobre o Aikido

Em Setembro de 2003, isso era o que o Aikido me provocava, conforme texto escrito à época, que já pela forma, até mais do que pelo conteúdo, me provoca inegável estranheza:

"Ontem, uma sensação estranha.

Diante de uma figura que exala um conhecimento invejável que busco a todo custo alcançar, mesmo contando com minha mediocridade, senti-me bem por poder simplesmente estar.

Desconstruindo uma espécie de "mito", quebrando expectativas. Nunca me sinto bem ao enxergar dentro de mim essa espécie de devoção a essa cultura e a esse conhecimento que tanto me atrai.

Talvez seja a serenidade que tanto invejo. Talvez seja meu desejo de fortalecer-me de forma inteligente. Talvez eu queira aprender e ter em mim, como raízes fincadas no solo, coisas que jamais poderão ser extraídas... por quem quer que seja...

Não sei até onde vai essa minha fascinação - coisa tão tipicamente ocidental - para as artes e para o modus vivendi da cultura japonesa. Pode ser um traço daquele meu antigo pensamento de que existe, em algum lugar físico ou mental, algo que seja realmente diferente da melancolia e da tristeza do mundo em que vivemos hoje...

E eu então sugo a seiva. Sem saber ao certo para onde busco realmente ir...

Uma mão segurando um copo de chá quente. E a gélida sensação de saudade daquele momento presente que não era ainda o passado, percorreu-me o espírito em movimentos circulares e tão familiares.

Nesse momento, meus olhos se desviaram e tive a certeza de aquele par de olhos riscados notou meu incômodo."

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Ri muito de mim mesmo. Ri tanto, mas tanto que durante todos segundos em que perduraram os risos, toda minha existência não mais fez qualquer sentido reconhecível.

Ora, o que eram todos os meus problemas e frustrações enquantou eu podia simplesmente rir ?

Nada ! A não ser os próprios motivos dos risos. Estranho.

Em alguma parte de mim havia algo que ridiculariza os meus entraves. Sabotava as minhas tristezas. Relevava minhas dificuldades. Desprezava meus medos.

Seriam nesses momentos, os dos risos, em que finalmente deparava-me com minha lucidez ?

Tudo adquirira o sabor do real contorno da verdade... Mas a náusea... Mas a náusea chegou.

Os risos estúpidos silenciaram. A onda assolou-me. O morcego voou sobre mim e suas asas negras - muito maiores do que o próprio - tornaram a noite mais escura do que calabouço.

A náusea é o calafrio. A vontade das lágrimas cortou meus olhos como uma navalha.

Mas então com um só silêncio, tudo mudou !

Os risos cessaram e então não haviam mais motivos para chorar. A rapidez de tudo me constrangeu profundamente.

Guardei meus problemas, meus medos, minhas frustrações e minhas folhas.

Respirei fundo. Prossegui.

Mas eu sei que você volta.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Onirismo com Pedantismo I

Misto de sutileza da febre que, como pluma de fogo, assoprava bafo quente em meu rosto, aliado às imagens de destroços provocados pelo recente conflito armado na Georgia, vistos por parcos segundos na TV, provocou-me pedante delírio nesta noite que se passou:

Sonhei com Maiakóvski ! Ou melhor dizendo, no meio de um sonho permeado de total escuridão, uma voz grave e decidida, atropelando-se incessantemente no enunciar das frases desordenadas, assim bradava, com o império de quem se pretende monopólio dos ouvidos:

"Fumo de tabaco roi o ar..."
"Recorda -atrás desta janela pela primeira vez apertei tuas mãos, atônito"


O sujeito de voz grave também bradou outras frases, as quais morreram na infinita profusão do inconsciente que não existe (viu, alemãzinha ?).


Fico ansioso em saber e angustiado por não recordar. Terá esse digno, culto e nobre visitante da minha noite ardente, recitado outros trechos que já se foram da minha memória, ou quiçá, trechos que eu desconheço por completo ? Terá ele falado de plenos pulmões além de Lilitchka ? De ananás e de outras coisas mais ?


Atenção Sr. Visitante ! Caso me contemple com nova visita, e assim desejo, já aviso de antemão que odiaria ouvir essa voz grave me importunar no escuro:
Não acabarão com o amor,
nem as rusgas, nem a distância.
Está provado,
pensado
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme
fiel
e verdadeiramente.

Não ! Não me venha, Sr. Visitante, com otimismos.
Passar bem !

terça-feira, 23 de setembro de 2008

simbolismos e cansaços

Anos atrás, quando Lula finalmente chegou à presidência do Brasil, ecoava incessantemente entre os mais diversos setores da esquerda: um torneiro-mecânico, de origem pobre e nordestino, alcançou o mais alto posto político do país, pouco mais de dez anos após o enterro definitivo da ditadura militar brasileira.

Nesse acontecimento histórico da política brasileira, dizia-se - ou ainda se diz - que havia um simbolismo inegável: um operário era o presidente do Brasil.

Tambem há anos atrás, quando nos reuniamos por meses a fio, tentando um mínimo de coesão entre grupos políticos de tendências, princípios e objetivos tão diversos, como ecologistas, anarquistas, comunistas, idealistas, estudantes, independentes, rockeiros, metafísicos, céticos etc, tentando organizar uma grande manifestação "anti-globalização", a ser reproduzida simultaneamente em diversos países do mundo, alcançávamos algum sucesso nesse intento: no dia da manifestação, a Av. Paulista ou o centro velho da cidade de São Paulo, era parado, havia visibilidade, cobertura da imprensa e violência da polícia.

Nesse acontecimento histórico da esquerda não institucional brasileira, dizia-se - ou ainda se diz - que havia um simbolismo inegável: a juventude, sobretudo, mostrava publicamente que a globalização não era unanimidade no pensar político, e que globalização econômica não se traduzia em justiça, igualdade e vida digna em nível global.

Há meses atrás, um grande amigo meu me convidou para visitá-lo em sua casa. Ao cumprir minha promessa e efetivar a visita, entre conversas e bebidas agradáveis, foi-me mostrado um pequeno quadro pintado por sua ex-companheira. No quadro, havia uma delicada pintura circular feita a tinta nanquim, na qual dois traços suaves e arredondados, separados em seu início, se espalhavam pelos espaços em branco da tela, para então se unirem agradavelmente no topo da mesma, formando um único e grosso lance de tinta.

Nessa pequena e despretensiosa pintura realizada pela ex-companheira de meu amigo, dizia-me este - e ainda me diz - que havia um simbolismo inegável: o amor já enterrado, já passado, já morto, ainda se encontrava incrivelmente vivo pela interferência do símbolo que ela havia construído para o sentimento que nutriam entre si, ainda que lágrimas deslizassem com vigor como reação à simples menção do nome da suave pintora.

Dias atrás - em qualquer dia desses que nos embotam o espírito - um sujeito da periferia adquiriu um carro muito acima de suas possibilidades, graças a um endividamento ad eternum. O tal carro era provido dos mais sofisticados sistemas eletrônicos e mecânicos, aliado a um conceito mercadológico rigorosamente planejado para atender as reais demandas do consumidor contemporâneo: embora carro por natureza, era esportivo e ecológico, traduzindo-se em um design que nos impressionava pela ligação umbilical com a natureza e um certo espírito de atleta.

Nesse mais um carro fabricado sob conceitos em voga, alardea-se por aí, que há um simbolismo inegável: mais do que o carro que transporta mais velozmente do que nossas próprias pernas, o que se busca é um símbolo de consumidor consciente: preocupado com a ecologia e com a sua saúde, ao mesmo tempo em que renega um carro que o ligaria à cafonice dos executivos com seus carrões de linhas clássicas.

Ontem, dia vinte e dois de setembro, há poucas horas atrás, no ato ocorrido em São Paulo, que defendia O Dia Mundial Sem Carro, manifestantes portando principalmente bicicletas, subiam e desciam ruas, ironizavam buzinas, suavam, xingavam e eram xingados, enquanto carros atolados no trânsito imóvel, eram ultrapassados com extrema facilidade.

Nesse dia de protesto, com objetivo de fazer do trânsito algo transitável, e da cidade algo menos cinza, repetiam os manifestantes para os jornalistas, os motoristas e os curiosos: é um ato simbólico contra a cultura do automóvel.

E foi aí que já massacrado por tantos simbolismos, por tantos símbolos de coisas irreais, irrealizadas, utópicas ou simplesmente mortas, que a revolta arrebatou meu espírito, como autêntico símbolo de um inconformismo funesto.

Que sejam símbolos ! Que se espalhem por todos os ventos todos os símbolos !

Que Lula não seja operário, nem seu governo um governo de e para operários e miseráveis.

Que os manifestantes se dispersem após o fim das manifestações, após serem devidamente fotografados, filmados, entrevistados, martirizados e auto-expiados. Que a política morra após o fim de cada evento globalizado e midiático.

Que o amor já tenha sido trocado, dilacerado, amaldiçoado ou simplesmente esquecido.

Que o carro seja simplesmente carro, ainda que o seu proprietário seja um débil "ecológico e esportista" que mal consegue subir a própria rua sem quase infartar, ou que ciclistas sejam símbolo de mundos irrealizáveis.

O fato é que estou farto dos simbolismos.
Hoje quero apenas as concretudes.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Levante-se !

Convicto, caminhe em direção ao espelho mais próximo, arregale os olhos ao limite do repuxar da pele, faça isso como se quisesse rasgá-la de uma só vez, como se toda e qualquer camada que impede a visão sobre si mesmo devesse ser definitivamente exterminada.

Olhe para si sem dó e sem complacência. Não ! Não desvie o olhar do espelho: essa imagem refletida nada mais é do que tudo aquilo que se mostra e que resplandece quando se está sob a luz.

Ouse arrancar sua pele. Arranque-a com a fúria de quem arranca de si mesmo uma infindável coleção de abelhas que cobre um corpo atacado por enxame.

Não tema qualquer vexame dessa vez: seria você capaz de arrancar todos os adereços, todas as roupas, todas as tatuagens, todas as cicatrizes, todas as marcas com que se camufla o que escondemos sob um peito dilacerado ?

Desvencilhe-se de tudo e de todos. Afaste de si visões ideológicas solidamente construídas sobre quaisquer coisas. Mande à merda concepções religiosas sobre os fatos e sobre os ódios. Enxergue os amores como vãs tentativas de se subtrair a si mesmo.

Ó! Por favor ! Faça uma demolição brutal sobre tudo aquilo que carrega sobre os ombros. Nesse momento já não importa mais a sua ascendência, extermine qualquer descendência e não faça pouco caso de jogar pelos ares absolutamente tudo que lhe desvie de si mesmo.

Inspire-se levemente em Descartes: com ímpeto violento, remova não os tijolos do edifício, mas sim a própria estrutura que o sustenta, até vê-lo desabar agradavelmente perante seus olhos.

Você já não precisa mais do cartesianismo agora: aniquile-o igualmente !

Jogue no lixo quaisquer preferências: seus romances favoritos não passam de jogos de encenação sobre vidas que não existem. As músicas e os ritmos que já lhe fizeram sentido terão o mesmo destino, reminiscências que são de algo inexistente.

Acabe com qualquer orgulho sobre qualquer trabalho. Seja você burguês, comerciante, liberal, professor ou estudante. Banqueiros e bancários unir-se-ão sob a mesma bandeira. Rasguemos, pois, os diplomas e as habilitações que pesam sobre nossas cabeças outorgando-nos poderes que apenas turvam quaisquer tentativas de nos enxergarmos com alguma nitidez.

Agora, já desprovido das camadas e artifícios diversos, livre de pessoas e de pensamentos que não lhe pertencem, liberto das amizades e das paixões, com olhar límpido não hesite em se questionar:

O que lhe sobra e o que efetivamente é você quando liberto e desprovido de todas essas camadas ?

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

inferno

A, B e C, são elementos que fazem parte de sua vida, sendo objetos de pensamentos, preocupações, atos e conversas cotidianas. Para o único fim de compreensão, não importa aqui se tais elementos se referem a pessoas, grupos ou lugares.

Quando está no A, ou quando está entre os A, embora sinta-se à vontade, sente constantemente um leve desconforto e estranho sentimento de estar fora de lugar. Nesses momentos, sempre pensa que, caso estivesse em B, ou caso estivesse rodeado pelos B, certamente sentiria-se mais compreendido e realizado. "Aí sim eu estaria entre os meus", pensava satisfeito.

O fato de que mesmo quando se encontrava em ou entre os B, ainda assim não encontrava a satisfação esperada, era algo extremamente incômodo e sobre o qual relutava terminantemente em refletir com honestidade.

Nessas situações, o desejo de estar novamente em A, ou ainda, a intuição de que se não estivesse ali agora, mas se estivesse lá com os C no exato momento em que lhe invadia o desconcerto ante aos olhares perscrutradores dos B, dominavam-lhe com fúria suas emoções descontroladas.

Se a salvação, enfim, era estar em C, ou mesmo que o salvar-se fosse estar mergulhado nas relações com os C, era absolutamente inadmissível que sentisse - como de fato sentia - aquele vazio profundo que preencheria um abismo, no exato momento em que nada além ou aquém de e dos C estava diante de si.

Quando isso lhe ocorria, logo retornava também o desejo de estar em B, sem deixar de lhe ser claro, no entanto, de que mesmo quando os A estavam ao seu redor, também os C se faziam necessários mesmo encontrando-se ausentes.

Foi então na contradição do infindável ciclo de satisfação irrealizada, incompleta e incontrolável: serpente que devora infinitamente a si mesmo, que descobriu o inferno.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Não poderia ter sido antes.

Só foi depois que senti o corpo estafado mas já estabilizado na poltrona vermelha, que descansei meus braços doloridos na grande mesa maciça e desocupada, que empurrei meus pés confortavelmente contra a parede áspera, que senti o percurso gélido de uma cerveja se iniciar na língua e rapidamente avançar em direção à minha garganta e ao meu estômago, só a partir daí é que pude realmente ouvir toda a gama de instrumentos tocarem o jazz, e sendo que apenas nesse momento me certifiquei que não havia possibilidade de explicar aquilo que se deliciava nos meus ouvidos.

Reconhecia uma certa melodia, e dentro dessa melodia, reconhecia também um ritmo. Da melodia e do ritmo que eu julgara já conhecer, buscava um padrão, haveria uma repetição na música que ouvia, e essa repetição me certificaria da existência de uma certa ordem natural das coisas. Não importava como e tampouco quando, os devaneios dos músicos seriam livres, loucos e destemperados, eles fingiriam a todo tempo não saber para onde voltar, improvisariam em bases seguras, mas, certamente, voltariam à mesma melodia e ao mesmo ritmo, assim como sempre volta para o ninho aquela criatura que tanto se arrisca durante o dia, confirmando a lei natural .

O diabo é que eles não voltaram ! Tal como aquele padre maluco que se jogou por aí ao sabor dos ventos acariciando o balão - admirável esse padre, não ? - os músicos não voltaram ao que eu esperava, e meu sentimento natural de retorno ao ninho: quente, aconchegante e conhecido, teve de ser rapidamente substituido por uma instantânea compreensão dos fatos.
Quem ouviu aquele jazz, ouviu. Quem não o ouviu com atenção, praticamente o perdeu de vez. Não haveria nova sessão e mesmo que os músicos resolvessem tocar tudo de novo, rigorosamente igual, algo me dizia que eles seriam incapazes de tal feito.
Com furor havia concluido que o jazz é assim mesmo: imprevisível dentro de sua previsibilidade. A sequência das notas obedece apenas à livre manifestação da consciência de quem as toca, sem qualquer plano anterior que possa garantir o rumo que será seguido. Balizas existem, ao menos ? Talvez apenas aquelas que garantam a delícia dos ouvidos: ritmo e melodia...

Tendo abdicado do desejo de encontrar o retorno ao conhecido na música que ouvia, a constatação seguinte era eivada da mais pura obviedade: a vida - ó ente ingrato - também é jazz!

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Circularidade: Aikido !

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Que se fodam meus joelhos doloridos e minha perna lesionada.
O que me importava unicamente era pisar com toda minha força na areia granulada, sentindo meus pés descalços afundarem naquela massa bege e compacta violentada pelo meu peso.

Que se fodam, também, minhas costas avermelhadas como sangue e o ardor provocado pelas roupas que a todo tempo as roçam. Nada mais era importante além do sol que me queimava deliberadamente o couro, desprovido de proteção, sem qualquer pudor.

Que se fodam meus pulmões. Colocá-los a todo limite e atingir o grau de quase inconsciência provocado pelo incessante arfar nada mais era do que um doce exercício solitário em meio a tantas pessoas.

Que se foda essa chama interna do corpo que sempre fraqueja. Corri com sorrisos solitários em direção à mais gélida água falsamente aquecida pelo sol de inverno. Gritei a plenos pulmões enquanto meu peito, minhas nádegas, meu abdômem e meu pescoço eram irremediavelmente envolvidos pelo cobertor fluido e sedutor que era a água.

Que se fodam todas as mágoas.
Todas as tristezas.
Todas as lágrimas que molham o deserto.
Ontem eu era corpo que sorria.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Definindo-se em "não ato"

(acredite ! superada a chatice dos primeiros parágrafos, talvez depois fique engraçadinho)
Quem conhece um pouco da filosofia de Sartre, ou mesmo suas obras literárias, certamente deve ter sentido - ainda que não compreendido - o peso do bloco fundamental para a compreensão dos principais temas sartrianos, que é a noção da responsabilidade do homem na construção de si mesmo.
Segundo Sartre, não existindo uma natureza humana que anteceda a existência do homem (expresso como "a existência precede a essência"), este nada é ao nascer, só vindo a ser alguma coisa, conforme aquilo que ele próprio vier a escolher para si mesmo. Nesse sentido, são seus atos que conferem a própria essência que o definirá.
Nessa linha, o homem não nasce bom, corajoso, malvado ou covarde. Mas faz-se assim a todo instante, conforme as escolhas que forem efetuadas, nas situações concretas efetivamente vividas, assumindo assim uma essência de homem que se faz bom, corajoso, malvado ou covarde.
Evidentemente, ao afirmar a inexistência de uma natureza humana anterior à existência do próprio homem, a filosofia de Sartre dispensa a figura e o papel de Deus como regente do mundo e dos homens.
Sendo o homem lançado em um mundo de contingências absolutas, apenas e tão somente a ele cabe o peso e a responsabilidade (no que lhe é efeito causal imediato, a angústia) de construir a si mesmo.
Em nossas vidas, no estado atual, somos capazes de identificar a relação causa e efeito entre o que somos hoje e as escolhas que fizemos no passado ? Não se trata de buscar relação de causa e efeito para eventos que são essencialmente contingentes (ter nascido no Brasil e não em outro lugar; ser proveniente dessa família e não daquela; ter nascido nessa classe social e não em outra), mas sim buscar enxergar que efetivamente aquilo que nos define hoje é consequência de nossas escolhas, e são estas escolhas mediadas pelos atos que praticamos, que definem nossa essência, ou nossa "natureza humana".
Porém, aqui vai um pensamento que está, não exatamente na contramão da filosofia sartriana, mas sim que expõe o mesmo ponto (o homem escolhe a si mesmo) sob uma outra perspectiva.
As escolhas sobre determinadas coisas que fizemos, e que depois as abandonamos, também podem, de alguma forma, terem o papel de definidoras de nossa essência, também como frutos de escolhas livres.
Exercitar esse outro lado da filosofia existencialista pode chegar a se tornar um exercício cômico, desde que feito com sinceridade. Lembra-se daquele projeto de aprender a surfar depois de velho ? Lembra-se das aulas de dança que você frequentou por três vezes e depois nunca mais teve coragem de voltar ? E sobre os montes e montes de páginas ou desenhos guardados dentro da gaveta, como sinal da desistência em ser escritor ou desenhista ?
Tal como revelar um sonho consistente a alguém, eis-me o que eu poderia ter sido e não fui, no que se poderá concluir também o que sou:
* músico (aulas e aulas de violão e guitarra para nada)
* praticante antigo de kung-fu (não nasci para ser louva-deus, águia, tigre ou bêbado)
* jornalista (ai se eu tivesse me matriculado na PUC...)
* escritor (ainda é tempo de queimar as folhas antes que alguém as encontre após minha morte)
* membro de torcida organizada (eu ansiava usar aquela blusa preta da Gaviões, aos meus 14 ou
15 anos de idade)
* homem bonito (tá.... a feiúra é pura contingência. Culpa de Deus)
* membro da fanfarra da escola (ao menos fiquei com o bico da corneta em casa, modo que o professor encontrou de me deixar longe dos ensaios)
* cristão (minha mãe bem que tentou....boníssima alma)
* fluente em latim
* membro do Partido Comunista do Brasil (cheguei a pegar a ficha de inscrição, mas a devo ter perdido em algum lugar, pois no mesmo dia comprei o Castlevania IV, do Super Nintendo)
* programador de computador (o que eu fazia nos intervalos das aulas eu não posso contar mas nem morto)
* amigo de padre (mas ele era da Teologia da Libertação, ora !)
* punk (hein ?)
* ser um Dhalsin da yoga (não tem jeito, aquilo de inspirar por uma narina e expirar pela outra, não é para quem só tem uma narina disponível)
* ladrãozinho de supermercado
* ladrãozinho de camisetas brancas no supermercado
* cozinheiro (bem que tentei. Agora acabaram os ingredientes)
* romântico (eu já li e compreendi Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe)
* putão (viver o corpo como receptor sensorial unicamente. Às vezes funcionou, viu ?)
* helênico (gosto de dizer que sou. Mas como, se a contingência me deixou para viver hoje e agora ?)
* viciado em haxixe (bendita hora em que arrancaram aquela segunda rodada da minha mão)
* historiador (caso eu não tivesse decidido ir à praia em vez de ficar estudando para a segunda fase da Fuvest do ano 1954)

Entenderam essa outra perspectiva da filosofia de Sartre ?

quinta-feira, 19 de junho de 2008

o velho escritor

Alguns episódios irrompem as lembranças de forma tão visceral, que sequer pode-se dizer que são lembranças, mas episódios revividos com a áspera brutalidade do real.

Éramos crianças naquela época. Vivíamos em bando e vivíamos em busca. Despertávamos então para as regras próprias de um bando de meninos, que viviam sua dupla vida de liberdade e opressão. Dentro das casas, fracos e quase sempre oprimidos. Fora delas, ganhavam um mundo à parte, um mundo grande e vasto. Com nossos códigos de conduta maniqueístas, nossos moralismos herdados, nossa masculinidade que clamava por parecer exacerbada, com a hierarquia que precisava ser respeitada.

Ah ! E também com nossas pequenas espertezas ! Jogados para viver numa rua nem diferente nem igual, em um bairro nem diferente nem igual, de uma periferia a mais da monstruosa São Paulo.

Era com indisfarçável esperteza, mas deveras com disfarçável vergonha, que cotidianamente o bando abordava aquele sujeito já meio gordo, de cabelos de algodão nas laterais, de óculos quadrados e grandes, de roupas abarrotadas, mas clássicas. Boina, calça social e sapatos, ar de inteligente.

Subia a rua e a ladeira com passos calmos, parecia pensativo, parecia afundado em meditações, ou em versos, ou em contos. Vivia em um mundo que não era o nosso, marcado pela dureza e pela consistência de uma pedra.

Era curioso e diferente. Enquanto todos que ali moravam se mostram à memória de hoje, como quase autômatos, com ele não. Ele era diferente. Ele subia a rua também, mas não simplesmente a subia. Ele pensava talvez em uma crônica, em uma história, criava qualquer coisa a partir daquele bando que diariamente encontrava-se à solta no mundo imenso e explorável que era a simples rua.

Era diferente dos demais. Não tinha o aspecto cansado do operário em fim de jornada getulista. Tampouco tinha o vigor dos passos dos mais jovens que ansiavam então por uma prancha de surf, ainda que vivendo na cidade. Ele tinha um ar diferente.

Só tempos depois, é que fiquei sabendo que o velho era escritor. Pensei que talvez fosse esse o motivo de sua aparência singular, de seus passos que pisavam aquele asfalto gasto mas que pareciam pisar em uma outra dimensão, em letras, em frases, em palavras, em sinônimos, em antíteses, em metáforas, em um mundo que não era o nosso.

Os velhos mais brutos dessa época assustavam os meninos com feições e gritos assustadores. Já os jovens batiam nos meninos por imposição, por simples razões hierárquicas.

Já o velho, não. Esse subia a rua e, com frequência, distribuia balas aos meninos. Era rodeado por um bando de moleques dos mais diversos tipos, das mais diversas famílias, que apenas tinham em comum a parca idade, a inocência que queriam destruir e o extremo e brutal acaso de estarem crescendo juntos, naquela rua e não em outra qualquer.

Era autêntica algazarra de meninos. E ainda que não fôssemos nada, e ainda que muitos de nós fôssemos seguir - em trágica e inocente ignorância - o rumo de uma vida que nos conduziria à mesmice ou às grades, éramos chamados de maravilhosos por uma boca sorridente.

Às vezes ganhávamos dinheiro, também. Não muito. Eram centavos, em verdade, mas era dinheiro. O velho nos dava algum dinheiro, enquanto subia a mesma rua que dominávamos como animais na selva. Dava dinheiro a nós, e esse dinheiro certamente faltava lá em cima, poucas acasas adiante da minha, pois sua esposa um dia indignou-se com os meninos. Quem eram esses que pediam e recebiam dinheiro do velho escritor ?

À noite, seus olhos eram vermelhos e úmidos. Eram como um lenço de uma viúva recente. Seu hálito era puro álcool. Seus passos eram mansos, mas passaram também depois a serem tortos.

Hoje penso que, se nós, meninos, sentiamo-nos muito espertos por receber balas e algum dinheiro, sutilmente o velho também arrancava algo de nós em troca. Talvez uma jovialidade e ansiedade de viver dos meninos, já naquela época fadada a morrer. Ele sabia disso.

Arrancava talvez alguma inspiração para algum conto. Se sim, ele estava certo. Tudo vale por um vômito de palavras a serem embrulhadas num papel.

A brutalidade real tocou-me quando encontrei seu livro, de poucas páginas e modesto, na estante ao lado de meu quarto. Uma data antiga e escrita à caneta lembrava o ano de 1986, e o "Tango Argentino" escrito pelo velho escritor, mostrava-se ali, na minha mão, como um item sagrado e mágico capaz de despertar reminiscências abandonadas na história.

No livro, há contos que não li.

Lembrei-me do desejo de imortalidade oculto que esconde a sete chaves um escritor. Vinte anos depois, o velho voltou a viver, subiu novamente a ladeira, seu hálito reacendeu-se.

Não havia mais meninos gritando e implorando por doces ou por trocados e a rua estava vazia, lamentando a ausência de vidas que se perderam na maturidade.

O livro na minha mão.

E o velho, naquele instante, imortal.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Sentiu um ímpeto violento afogar-lhe a garganta enquanto a língua seca e áspera se agitava no interior de sua boca, tal como uma cobra que serpea sua presa marcada para a morte.
Com as mãos agitadas e nervosas, tentava por meio de um pesado balançar, rememorar os versos que só anos depois lhe fariam sentido. Grudados na árida boca, as palavras recusavam-se terminantemente a serem cuspidas: ".... Transtornado, tornado louco pelo desespero. Não o consintas, meu amor, meu bem, digamos até logo agora....".
Um sorriso irônico permeado de tristeza. Repetiu a si mesmo:
"Não o consintas.....digamos até logo agora...", ordens inexoráveis para o início de passos duros e punhos cerrados, ao que se seguiram pequenos goles de ar que preenchiam o vazio dos pulmões ávidos por um louco estado arfante.
Ele simplesmente não podia mais se conter. Pensamentos incessantes massacravam sua cabeça, deixando rastros de culpa e orgulho:"Eu não era assim tão terrivelmente violento a ponto de desejar que cada corpo desses que passa por mim, seja alvo de pancadas, chutes e socos. Já fui sereno.... cantarolava por estas mesmas ruas. Já sorri sinceramente para todos estes seres desprezíveis que hoje me provocam náuseas...".
Com os olhos semi-cerrados e a tensão esculpida no rosto, incontáveis vincos afundavam e percorreriam toda sua face, esparramando-se como córregos fétidos que cortam bairros podres.
Andando pelas ruas, ainda se notava nele resquícios de um sujeito elegante. Ainda que a barra de sua calça folgada raspasse o chão, deixando o tecido carcomido pelos selvagens dentes do asfalto, e mesmo que sua camisa aberta e deformada por uma barriga que, proeminente, lançava-se adiante de seus passos, mulheres e pederastas olhavam-o a todo tempo.
Uma caça constante por troca de olhares que pudesse significar um resquício de humanidade naquele soldado selvagem. Soldado que batia violentamente seus pés calçados com sapatos esbranquiçados, no solo banhado de sangue invisível da tresloucada São Paulo.
No entanto, nenhum olhar o detinha. Pederastas sentiam que a violência e os pensamentos sanguinários que exalavam de seu corpo, poderiam ser melhor aproveitados em sessões de sexo marcado por couro e fetiches sombrios. As mulheres não enxergavam nesse corpo, outrora musculoso, e nessa face, outrora pacífica, nada além de um homem cuja alma poderia ser remediada com golpes de amor e de carinho, única forma de livrá-lo das maldições sentimentais, de amores corrompidos e de dores inexpugnadas.
Ainda assim. Olhavam. Desejavam. Corrompiam.
Ele mesmo nada fazia. Apenas uma volta pelo centro da cidade, em suas tortuosas vias. Uma infinidade de sangue, dor, sofrimento e consternação eram a matéria-prima de seus pensamentos e de seus desejos, insuportavelmente viscerais.
Sorriu de novo. Melancolia. A sequência dos versos rememorados foi despejada em sua cabeça sem qualquer prévio aviso: "...mas a mim nenhum som me importa afora o som do teu nome que eu adoro. E não me lançarei no abismo, e não beberei veneno, e não poderei apertar na têmpora o gatilho...".
Respirou fundo. Mais do que pequenos goles, um furacão de ar lhe preencheu os pulmões, com seu pensamento remoendo o plano: não se prolongariam, diriam até logo e diriam isso agora.
Odiariam-se, decerto. Culpariam-se mutuamente por tudo e por nada. Mas não beberia veneno e não estouraria seus miolos.
Desejou desfazer-se de seus pensamentos sanguinários, mas a postura de permanente combate infligia verdadeiro monopólio em seu coração.
Não foi por outra razão que ao avistar aquele esquálido sujeito apoiado em sua motocicleta, de peito aberto e um já insípido chiclete mascado na boca, desejou com ardor enfiar-lhe um soco nas costelas, de modo que este único impacto o faria dobrar-se em joelhos e mendigar clemência.
"Maldito !", diria com veemência a este sujeito dobrado no chão, mártir de todas as infelicidades que suportara. "Alguém deve pagar ! Pouco me importa quem !", sua boca balbuciava tais palavras enquanto afastava-se cada vez mais do sujeito e de sua motocicleta, que sorria tranquilamente enquanto observava os estranhos passantes.
Na esquina seguinte, novo tormento. Uma não sei qual sensação de punição se apoderou do rapaz quando uma bela prostituta nele lançou olhares de interesse. Ele tinha notas no bolso, notas essas que lhe conferiam segurança em si mesmo. "Se quiser um trago de algo qualquer, basta-me arrancar apenas uma dessas notas. Não dependo de ninguém." Com o sexo, poderia se pensar o mesmo. Se quisesse, um simples raspar de dedos no pequeno bolo de notas que recheava seu bolso, seria capaz de lhe colocar à disposição essa ou qualquer outra bela mulher.
Treparia violentamente. Não diria uma só palavra durante o coito. Contrairia todos seus músculos e ficaria brilhante de suor. Uma estátua de suor. Era como gostava de se imaginar. Apenas poucas notas que precisaria tirar de seu bolso, e pronto, lá estaria ela, nua, sedutora, voz suave, corpo delineado na mais artificial luz de um quarto horrendo.
Viria o gozo abrupto e selvagem. Urraria como lobo perdido de sua matilha. Após a estafa, e após o incrível vazio que sempre se apoderava de sua alma segundos após se desfalecer no seio de qualquer uma, estaria pronto para pagar pelo minuto de prazer.
Logo em seguida, o óbvio: teria um desprezo absoluto pela mulher. Frágil e vão. O desprezo pelo outro jamais o impediu de sentir igual desprezo por si mesmo.
Mas enquanto a prostituta o observava, decidiu nada fazer. Hoje ele não tiraria nota alguma de seu bolso. Hoje ele amaria poder arrastar essa ou qualquer outra que lhe cruzasse o caminho. Arrastaria pelos cabelos sem dó. Jogaria-a no chão e cuspiria em sua cara. "Você me dá nojo. Eu tenho nojo de amor a preço certo.", seria a frase ideal para terminar sua cena.
Mas apenas passou por ela e nada disse, mais uma vez.
Sentia uma raiva como há muito não tinha a chance de experimentar. Não havia episódio concreto a provocar tamanha fúria neste singelo dia de sangue não derramado, de agressões não consumadas, de coito violento e bestial não efetivado. Ele apenas via as pessoas nas ruas e elas lhe provocavam o mais profundo desgosto.
Precisou ir embora para não dar vazão a seu eu que clamava por expressão. Precisava controlar-se, ainda que renunciando a si mesmo.
No caminho de volta para sua maldita casa - ela nada era além de depósito de um autêntico lixo humano - pôs-se a completar, aos brados vigorosos e ensandecidos em meio a plena rua, a poesia que há muito havia lhe encantado:
"...Amanhã esquecerás que eu te pus num pedestal,

que incendiei de amor uma alma livre,

e os dias vãos - rodopiante carnaval -

dispersarão as folhas dos meus livros...

Acaso as folhas secas destes versos

far-te-ão parar,

respiração opressa ?"




sábado, 24 de maio de 2008

Encontraram-se e resolveram entrar em um pequeno café da rua estreita. Dentro do café, uma cópia grosseira da escultura de Afrodite, do Louvre, os observava:

XX: "...... e então quer dizer que nada mais importa ! "
XY: "Foda pensar assim, né ? Mas é apenas sinceridade. Nada mais importa."
XX: "E logicamente seus sonhos já não valem um centavo sequer. Seus projetos podem ser realizados agora ou talvez nunca. E você ainda me diz que não muda nada fazer agora ou não fazer."
XY: "Sim. No fundo mesmo, não muda nada."
XX: "Ou seja, você está no foda-se total !"
XY: "Não me orgulho em dizer que sim. Mas eu quero que tudo se foda mesmo."
XX: "Ainda se lembra de uma carta que escreveu para si mesmo, quando você tinha 17 anos ? Eu nunca a li, você nunca a mostrou a ninguém, mas não sei porque, um dia me contou com algum orgulho que tinha escrito uma carta para si mesmo."
XY: "Fiz isso de verdade, eu tinha 17 anos e era um estúpido."
XX: "Nunca me disse com clareza o que é que você escreveu para si mesmo..."
XY: "Bem que poderia ter sido uma carta com alguma frase sábia, algum alerta que eu poderia dar para mim mesmo. Isso até me daria algum orgulho, sabia ? Eu teria escrito talvez uma coisa simples, algo assim: "nada do que você pensa hoje vai sobreviver. Tudo vai morrer". Eu realmente acharia muito foda ter me dado um alerta desse há 14 anos atrás."
XX: "Você é esquisito...."
XY: "...."
XX: -"Ainda não me disse o que é que você escreveu nessa carta....."
XY: "Pelo menos eu já te disse o que eu poderia ter escrito, e o que teria me provocado orgulho."
XX: "Como você não escreveu, nada vale."
XY:"Se quer mesmo saber, se isso vai te dar a idéia de que poderá entender melhor minha cabeça de hoje, então eu te conto. Nessa maldita carta que escrevi para mim mesmo, eu usei uma caneta para envergonhar o papel. Eu escrevi alguns princípios que deveria obedecer por toda a minha vida. Lembro que o último deles era que eu não poderia jamais desobedecer meus princípios."
XX ri sarcasticamente. Faz cara de surpresa, mas logo em seguida reassume sua feição inquisidora:
XX: "Um merdinha de 17 anos que escreveu os princípios para obedecer por toda a vida, e ainda por cima escreveu que não poderia desobedecer nunca....... Você se achava muito inteligente e esperto, não é ?"
XY: "Me diziam que eu era inteligente e esperto, e eu gostava de acreditar nisso. Falavam ainda que eu era bonito."
XX: "Você ainda é bonito. Mas sua beleza é inofensiva. Mas isso também pouco importa agora."
XY: "É que eu também gostava de acreditar nisso...."
XX: "Não importa mais. O que eu quero entender mesmo é como você escreveu sobre princípios que te comprometeriam por toda a vida, e agora vive me dizendo que quer que tudo se foda."
XY: "Eu já te disse que era um estúpido nessa época, e acho que todo mundo era estúpido como eu também. Diziam que eu era esperto, veja só !"
XX: "Como você explica a transformação de um jovem estúpido e cheio de belos princípios para o que você é hoje, um cara cujo prazer é se difamar e se rebaixar para qualquer um que esteja disposto a te ouvir ?"
XY: "Eu também não sei como aconteceu. Sei que teve um certo dia que eu me dei conta que não me importava com mais nada. Eu fazia um monte de coisas, sozinho ou com um monte de gente que eu achava parecida comigo. De repente, eu vi que poderia deixar de fazer todas essas coisas, que poderia deixar de ver todas essas pessoas, e que a minha vida seria rigorosamente a mesma. Nada mudaria !"
XX: "Isso é mentira. Você está mentindo feio. É impossível que qualquer pessoa deixe de fazer tudo que faz na vida, de um dia para o outro, e ainda por cima ache que a vida vai continuar igualzinha...."
XY: "Eu sei que é difícil acreditar. Nem mesmo eu ainda consigo entender isso. Mas sabe quando você gosta muito de uma comida, e aí você acorda num certo dia, pensa nessa comida, e ela te dá tanto enjôo que você passa a ter certeza que nunca mais vai comê-la ? Foi mais ou menos assim comigo. Eu acordei e tive a certeza que nada mais me importava. Nem ninguém."
Com clara impaciência, XX esperou XY terminar de falar, para de bate pronto responder:
XX: "Cara, você é muito esquisito. Eu não quero encerrar a nossa conversa, só por isso vou dizer que eu entendo o que você disse. Mas não me peça pra achar que isso é normal, que todo mundo enjoa de uma comida e depois nunca mais a come. Falar de enjoar das coisas que faz e das pessoas ainda.... Mas tudo bem. Eu entendi o que você quis dizer."
XY: "Foi você que perguntou. Eu só disse isso porque me perguntou sobre a carta. Eu também não acho que vale a pena ficar conversando sobre isso. Mas já que comecei, vou deixar você ainda mais fudida: foi só depois desse dia que enjoei de tudo, que resolvi remexer nas minhas coisas até encontrar os meus princípios de moleque."
XX: "Se você tiver o mínimo de seriedade ainda, deve ter se sentido com vergonha da sua carta. Você a leu ? "
XY: "Li...."
XX: "E como ficou depois de ler ? Chorou ? Sentiu raiva ?"
XY: "Eu li e a palavra estúpido ficou martelando sem parar na minha cabeça. Mas isso não me deu raiva, nem choro, nem vergonha, nem nada. Eu só li e achei que eu poderia não ter escrito aquela carta, que não mudaria nada."
XX: "Porra ! Lá vem você de novo com essa história de que fazer ou não fazer dá na mesma ! Acho que você tá ficando louco mesmo. Meu, por mais que você odeie isso,você escreveu a porra da carta, se não tivesse escrito a gente nem estaria sentado aqui falando sobre isso. É tudo tão óbvio que me irrita ter que falar isso."
XY: "Todas as coisas óbvias te irritam....sempre te irritaram...."
XX: "E você deve pensar que essas suas generalizações sobre mim, sobre como eu penso, te dão um ar de sabedoria....."
XY: "Sabe que de tudo que eu li na carta, uma coisa me chamou a atenção ? Foi o princípio número sete, era o princípio que falava sobre "eu terei que aprender a ser feliz sozinho". Acredita que ele me chamou mais a atenção do que o terceiro princípio, que dizia que eu deveria sempre estar envolvido em lutas e atividades políticas ? Acho que eu tinha um medo enorme de me emburguesar..."
XX: "Isso é um pouco patético mesmo. Ainda mais quando a gente lembra que seus amigos, ou melhor, seus companheiros das tais lutas políticas, são todos uns bons burgueses. Aliás, você mesmo é assim..."
XY: "Eu sou burguês e isso no fundo ainda me desagrada também. Mas como agora nada mais importa, foda-se minha burguesia também."
XX: "Você arrumou um belo salvo-conduto para sua vida. Age agora como todo mundo, mesmo os que você desprezava até pouco tempo atrás. O seu foda-se a tudo é só uma forma áspera de se sentir confortável, assim como um bom burguês gosta de estar confortável em sua poltrona na sala de estar."

XY: "Eu só não finjo mais nada. Não tenho mais nenhum papel a interpretar. Meu personagem já morreu, aliás, hoje em dia o que faz sucesso é o reality show, não é preciso interpretar mais nada."

XX: "Mesmo assim, volto a seus princípios de ser feliz sozinho e estar sempre envolvido com política. Hmmm..... acho que você não era assim tão estúpido, como diz. Pensava em coisas que gente da sua idade nem pensava, tenho certeza. Eu mesmo, não pensava em nada disso. Nessa idade eu só pensava em sexo, em transar, eu via possibilidades de trepar em todos os lugares que ia."

XY: "Sexo não apareceu em nenhum princípio meu. Mas também né, eu tinha que ser feliz sozinho, não faria muito sentido..."

XX: "Nada faz sentido nisso tudo, parece. Nem sua cabeça à época, nem a de agora. Nem o princípio número três, nem o número sete, nem nenhum outro que eu nem conheço, mas já posso imaginar como são... Você me amava há até um tempo atrás, pelo menos me dizia isso. Já aqui desobedeceu ao último princípio e ao sétimo, pois você deveria ser sozinho e não foi. "

XY: "Mas agora eu sou. Mas não tem nada a ver com esses princípios..."

XX:"E mentiu de novo para si mesmo, pois largou tudo ligado à política que você fazia. Até as pessoas que você gostava desse meio, você abandonou. E olha que tinha uma lá que era louca para ficar com você...isso me irritava !"

XY: "Eu menti em tudo. Ou em quase tudo. Acho que só não menti quando disse que eu te amava. Eu achava mesmo que poderia ser feliz com você."

XX: "Não tivesse sido tão canalha comigo, acho que você poderia mesmo... Uma trepadinha só, né ? Não teria mal algum..... Mas quando me contou, não perdi a oportunidade de acabar com você. Hoje vejo que você me foi muito conveniente."

XY: "Devo ter feito isso para enfim poder ficar sozinho."

XX: "Não me importa mais porque fez. O que eu sei é que toda essa história sua de sumir do mapa, de não falar com mais ninguém, de não fazer mais nada, essa coisa de carta de princípios, de ser feliz sozinho agora também...meu Deus.... Não te dou um ou dois meses para se humilhar. Vai mendigar companhia de qualquer pessoa, mesmo que seja da pior pessoa do mundo."

XY: "Eu quero ser feliz sozinho. Só isso."

XX: "Sempre achei que você se atribui mais importância do que realmente tem. Agora tenho a impressão muito forte que você se enxerga como Deus. Não precisa de nada e de ninguém."

XY: "Acho que tenho é inveja de Deus. Ele é que é feliz."

XX: "Não tem idéia de como é ridículo te ouvir falar essa frase...."

XY: "Mas é o que eu acho. Sabe que Deus é fundamento de si mesmo ? Ele se basta. Ele se cria e cria tudo. Só que tudo tem fundamento nele mesmo, que é Deus, mas ele mesmo não tem fundamento em nada que é de fora, só nele. "

XX: "Então se Deus quer ser feliz ele pode, afinal a felicidade ele pode criar também. Tá dentro dele."

XY: "E não precisa de mais nada para isso, só dele mesmo."

XX: "E pelo jeito, esse agora é o seu projeto, ser feliz como Deus. Com a pequena diferença que você não pode criar nada, aliás, mal consegue pagar seu aluguel...."

XY: "Você acha absurdo, eu sei. Mas não quero fazer como Deus faz, só quero ser feliz sem precisar de você, de qualquer outra pessoa, coisa ou acontecimento. Só quero depender de mim mesmo, isso não parece tão absurdo."

XX: "Não tão absurdo quanto eu estar aqui te ouvindo, isso você tem razão."

XY: "No fim das contas, eu te concedo o benefício da dúvida. Eu sei que você deve estar rindo por dentro agora. Falo quero ser Deus, que vou ser feliz só comigo mesmo, que nada mais me importa. Tenho certeza que você deve estar pensando agora que sou um idiota, pois sou contraditório, desejo que tudo se foda e ao mesmo tempo excluo do tudo a minha felicidade. Pois digo que quero ser feliz ainda, mas sozinho."

XX:"Você só me parece um garotinho em crise. Nada mais. Mas é difícil te ver como um garotinho ao mesmo tempo que vejo seus crescentes cabelos brancos, ao mesmo tempo em que vejo seus dentes amarelados por tanto cigarro que já fumou."

XY: "Você tenta fazer eu me sentir ridículo. Mesmo seus olhos tentando me congelar agora, me petrificar em um simples boneco de um garotinho triste. Mas tenho certeza que vou conseguir o que quero. Não é muito na verdade, só quero que tudo que eu precise esteja dentro de mim."

XX: "Cansei da sua conversa. Cansei de tudo que me falou. Você agora tem uma falsa inteligência, tem um discurso bonito para justificar nada mais do que um grande egoísmo."

XY: "É possível. Mesmo assim vou tentar. Mas sabe....eu continuo gostando de você.... Eu não queria que a gent...

Com extrema virulência, XX interrompe:

XX: "Vai se fuder ! Cale essa boca !"

XY: "..."

Nesse momento a cópia da estátua de Afrodite se enfeiou ainda mais. Seu gesso poroso se esfarelava, provocando pequenos montes de pó branco à sua frente.

Levantaram-se, deixando o café para trás. Sem qualquer gesto que indicasse rancor ou tristeza, seguiram em direções diferentes.

Meses depois, XX avistou XY passeando de mãos dadas com uma mulher mais velha do que ele, cara de inteligente. Compravam um saco de pipoca, enquanto riam ao contar as moedas.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

sofrimento sereno














Laocoonte, no Museu do Vaticano, Roma. Fotógrafo: eu mesmo ! que felicidade....


A história de Laocoonte é a história do homem que sofre. Sacerdote do deus Apolo, Laocoonte foi morto, em conjunto com seus dois filhos, pela serpente enviada pelo deus Poseidon, em episódio narrado na Ilíada, de Homero.
Obra de importância fundamental na arte grega, foi por meio dela que J.J. Winckelmann, na clássica obra "Reflexões sobre Arte Antiga", definiu o ápice do processo de perfeição e beleza desenvolvido pelos gregos nas belas artes, seja sob o ponto de vista da perfeição e harmonia de suas formas, seja pelo que carrega em seu simbolismo mítico.
De fato, na cultura grega clássica, a representação artística dos deuses desempenhou importante elemento de expressão do meio social do qual surgiram. Diferentemente do deus da tradição judaico-cristã, bem como dos mortais que foram erigidos posteriormente à condição de santos, a grande lista de deuses e semi-deuses gregos se notabilizava pela intensa reprodução dos mais puros sentimentos humanos, intensificado pelos poderes e pelas glórias emanadas do Olimpo.
Assim é que a líada, de Homero, antes mesmo de ser uma narrativa épica sobre a Guerra de Tróia, travada entre aqueus e troianos, pode ser definida também como a história de uma guerra movida pelas mais simples e cotidianas paixões humanas: o amor, o desejo de vingança, a busca pela glória e pela honra, as preferências e conspirações entre deuses para favorecer um ou outro homem ou lado do conflito, a impotência e a fraqueza humanas.
Nenhum dos deuses gregos estava imune a tais sentimentos tão tragicamente humanos, mas ao contrário, deixavam muitas vezes dominarem-se pelas paixões, para em seguida agirem, com todo seu poder e prestígio, na intensificação ou na resolução da guerra.
É na simples humanidade dos sentimentos demonstrados pelos deuses olímpicos que residia sua legitimidade e força entre os gregos, lógica essa que se encontra presente - ainda que de forma bastante diferenciada e já distante de uma humanização- em grande parte das mitologias atuais, inclusive a cristã católica.
No entanto, embora haja a presença desse traço humano no perfil psicológico dos deuses gregos, é igualmente certo que a condição divina outorga uma diferença vital na exteriorização das emoções e das paixões.
Essa diferença vital se manifesta na contraposição que pode haver entre um sofrimento suportado por um homem comum, e aquele que é representado pelos gregos, sobretudo em relação aos deuses.
Há, por exemplo, formas e formas de se expressar um sofrimento, em uma matiz que pode oscilar entre a histeria e a soberania. O sentimento da dor pode provocar como forma de alívio, um grito agudo ou um gemido grave, saído de lábios retorcidos pela dor ou que ainda conseguem - mesmo em estado de dor - preservar uma superioridade em relação a ela.
Para Winckelmann, a escultura de Laocoonte - mesmo não se tratando da representação de um deus - apresenta com perfeição tais características, das quais destaco em especial a questão chamada de sofrimento sereno.
É possível sofrer com serenidade ? A dor pode ser compatibilizada com uma atitude psicológica que nos afaste de uma posição de submissão em relação a ela ?
Obviamente a obra de Winckelmann não se propõe a responder a tais questões, mas coloca em tamanha evidência a soberania e a serenidade com que Laocoonte sofre em seu momento de morte, agravado pela morte iminente de seus dois filhos que o acompanham, que a indagação - embora extrapole a análise estética - se coloca como uma questão atual e cotidiana para nossas próprias vidas.
Laocoonte é homem e sofre. É picado por uma serpente que, fatalmente, irá também matar seus dois filhos. Laocoonte sofre com soberania e serenidade, na medida em que se coloca em posição superior à sua dor, e sua expressão facial indica claramente isso: há dor, mas há dor sofrida com serenidade.
Sua expressão indica a morte iminente, mas não há traço de histeria na manifestação do sofrimento. Seus lábios mostram que a dor lhe provoca gemidos. Não provoca gritos ou histeria. Com algum exercício de imaginação e entrega à apreciação da escultura, pode-se "ouvir" um gemido grave, prolongado e algo duradouro.
Seu corpo contraído indica a luta contra a morte provocada pela serpente. Não há um corpo desfalecido e entregue, mas sim um corpo no auge de sua forma, com os músculos claramente demonstrando a própria soberania do corpo em relação à dor.
O momento apresentado na escultura é o ápice da dor. Não o antes e não o depois. Mas sim o cume do sofrimento que coincide com a picada da serpente em sua cintura.
A partir desta exata cena, podemos visualizar o que se passou antes, com o ataque da serpente, e podemos visualizar também o que vem depois: a morte de Laocoonte e seus dois filhos.
Para Winckelmann, em defesa apaixonada da arte grega, em especial da escultura, este foi o ponto máximo e mais belo atingido pelos homens nas artes. Laocoonte é a própria representação do limite a que pode chegar a arte humana, sendo que toda a arte produzida após os gregos, não passa de arte decadente, na medida em que progressivamente se afastou do ideal helênico.
Tomada de posição radical, sem dúvida, mas que Winckelmann defende com tamanha ardor e paixão, que é muito tentador se render à sua conclusão óbvia: a arte só voltará a significar algum valor estético ao homem, quando este reconhecer que nada mais lhe resta a não ser efetuar o exercício da mimesis, ou seja, desenvolver as artes a partir do conceito grego, imitando-a, sob pena de observarmos apenas sua a progressiva decadência.
Nesse ponto, retomo a indagação acima. É possível sofrer com serenidade ? A dor pode ser compatibilizada com uma atitude psicológica que nos afaste de uma posição de submissão em relação a ela ?
Não é preciso concordar, evidentemente, com a polêmica e apaixonada defesa da arte grega clássica de Winckelmann, tampouco enxergar a arte posterior como pura decadência.
A questão que se coloca, no fundo, é se podemos a partir dessa análise estética de Laocoonte, estender arbitrariamente, de alguma forma, a sua análise, para cogitarmos acerca da possibilidade e da aplicabilidade, em nossa própria vida, do conceito de sofrimento soberano.
Que a dor e o sofrimento são inevitáveis, isso faz parte de um conhecimento evidente de quem vive. Mas podemos sofrer estando acima da dor ? Podemos submetê-la a nós mesmos ?
Laocoonte segue sendo um enigma particular para mim, ao mesmo tempo que um ideal, uma inspiração para além do campo estético, daquilo que eu mesmo gostaria de alcançar, no que se refere à simbologia da relação entre dor e sofrimento, fenômenos inevitavelmente humanos.