quinta-feira, 15 de outubro de 2009

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

arnaldo morreu

Passado tanto tempo, Arnaldo já não mais subsiste.

Com a vigência da lei antifumo, seu destino - como aliás toda a sua vida - foi medíocre.

Após os eventos relatados, retornou ao bar em que se encontrava para recuperar qualquer coisa. Pouco importa.

Recuperar algo perdido e sem importância clamou por um cigarro mole de baba e assim que o sacou do bolso da calça, se deu ao trabalho último de acendê-lo. Ainda o fez com isqueiro bonito e vistoso, como se isso fosse um prelúdio de um último belo ato que antecederia à sua desgraça.

Aceso o cigarro, acessado o domínio da ilegalidade.

Uma jovem estudante, promissora turismóloga, que se encontrava sentada poucas mesas adiante
da cena do crime, constantando o estado de flagrância do delito de Arnaldo, imediatamente acionou seu telefone celular com acesso direto ao twitter.

Twittou - respeitando o limite de caracteres e do próprio o que dizer. Isso não é digno de uma época nossa ? - em seu perfil pessoal de que um cigarro acabara de ser aceso no bar. Indicou nome e endereço da cena do crime e deu a exata localização do agente criminoso.

Seus seguidores (não ! ela não conhecia nenhum. Mesmo assim era estranhamente seguida) imediatamente receberam a informação e em questão de segundos acionaram a Gestapo anti fumo com seus ridículos coletes.

Mais rápido do que a chama foi capaz de vencer o papel do cigarro babado, a equipe gestapiana chegou ao bar, borrifou seu cigarro que tristemente cedeu à pressão.

Arnaldo foi levado ao distrito policial e preso. Assinou uma série de papéis e aguardou sua soltura que se daria apenas na manhã seguinte.

Já na cela, um companheiro preso - adepto da umbanda - resolveu invocar seus benfeitores espirituais por qualquer motivo.

Em meio à cerimônia, infelizmente seu charuto fumegante caiu no chão e quase queimou o
pé de Arnaldo, que solícito como lhe era habitual, imediatamente o pegou do chão e, distraído com a quantidade de fumaça que era capaz de soltar e, antes mesmo de conseguir devolvê-lo, foi surpreendido pelo carcereiro com a boca na botija, ou melhor, com o charuto fumegante na mão.

Nova voz de prisão e multa contra Arnaldo que já se encontrava inclusive preso.

Nunca mais se teve noticia do coitado.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Parte 1

Arnaldo não duvidou de si mesmo ao ver sua imagem refletida no espelho. Tanto sofrimento havia decerto tirado um pouco de sua jovialidade e muito de sua crença em uma ordem natural das coisas, das pessoas e do mundo.
Mesmo assim, como que desafiando a sucessão natural dos fatos, ali estava ele, olhando-se no espelho e se achando um rapaz ligeiramente atraente.
Dobrou as mangas da camisa até acima dos cotovelos, de tal forma que seus braços naturalmente fortes, traço inegável de uma masculinidade não escolhida, ficassem visíveis para aquela sujeitinha que iria vê-lo após tantos meses de ausência se que fazia mais presença do que a própria presença em pessoa.

Estivessem tais coisas submetidas à sua pequena tirania, Arnaldo nao hesitaria em tornar visível outra coisa. Para sermos ainda mais honestos com essa miserável figura, era a sua descrença em tudo que um dia havia assumido uma feição de ordem, que deveria alcançar os altos graus de visibilidade. Não os seus malditos braços !

De toda forma, conseguiu ainda pensar que seus braços poderiam estar tatuados, forma comum de se mostrar coisas a terceiros. Ao menos naquela noite, desejara isso. E ainda que isso fosse absurda contradição ao seu perene horror às coisas definitivas de qualquer espécie. Para ele, riscos imutáveis na pele assumiam a forma de verdadeiro desespero em forma de ânsia.

Ainda assim, desejara que em sua pele estivesse escrito alguma coisa grandiosa, uma frase em latim, por exemplo. Coisa fina mesmo, visto que palavras concisas mas de significado incontestável expressariam toda a dor - seguida da superação - a que fora submetido desde a separação.

Às dez da noite, Arnaldo sacou o telefone celular do bolso de sua calça de linho cuidadosamente guardada durante toda a longa semana, e constatou: "É chegada a hora". Um frio absurdamente gélido percorreu-lhe toda a espinha indo repousar apenas em seu ventre, provocando-lhe um sem número de contrações involuntárias.

Mesmo assim, respirou fundo e caminhou apressadamente até o bar. Almejava realmente chegar antes dela, para que pudesse se sentar sozinho na mesa, pedir um conhaque com limão em homenagem à sua própria juventude e a aguardar.

Ao chegar no bar, ela pagaria por tudo ! Tendo de caminhar uma considerável distância da porta de entrada até a mesa em que se encontrava, ela teria tempo suficiente para ver que apesar de tudo, ele ali estava, altivo, forte, envelhecido mas ainda ostentando alguma dignidade.

Tinha absoluta certeza que ela pensaria imediatamente ao vê-lo sentado no bar: "ele ainda é belo. Mas sua beleza já está gasta". Mas isso pouco importava.
Outra coisa que ela pensaria, mas nesse ponto Arnaldo cultivava sérias dúvidas, era a de que a tola se arrependeria de tudo ! Ora só ! O momento perfeito seria o arrependimento sentido apenas na visão dela sobre si mesmo sentado melancólica-altivamente no bar. Se não fosse antes das palavras serem ditas pelos dois, não seria nunca !

Arnaldo havia efetivamente trabalhado para isso acontecer.

Nesse meio tempo em que se tornaram estranhos, ele havia se instruido. Tal como acontecera com inúmeros presos que se aproveitaram da reclusão para se dedicarem às leituras religiosas, políticas ou filosóficas, emergindo das grades muitas vezes como líderes de massa, o fato é que Arnaldo usara seu exílio forçado para crescer: em questão de meses se habituara com o universo dos russos, dos franceses e dos latino-americanos. Aprendeu a ler poesia com alguma maestria e até mesmo chegou a seduzir deliberadamente uma ninfeta ao recitar um fragmento de verso que havia decorado, enquanto a massageava nas costas.

Se aquela noite era uma guerra, se aquele reencontro colocaria frente a frente antigos aliados que agora se debatiam no campo de batalha, não havia dúvida alguma que Arnaldo se sentia confiante por seus meses de árduo treinamento.

Pois então, chegada a hora como havia constatado, Arnaldo se lembrou de que um item importante havia sido vergonhosamente esquecido: os cigarros ! Sem tatuagens nos braços ainda vai. Não se tatua assim da noite pro dia ! Ainda mais alguma frase em latim, coisa mais morta do que mulheres sensíveis à inteligência de um homem. Mas os cigarros eram imprescindíveis.

Porém, com a ausência fundamental dos cigarros, esse novo item que ela desconhecia, Arnaldo consultou seu relógio telefone e teve a certeza de que teria tempo suficiente para comprá-los na banca de jornais postada ali perto, na esquina da Rua Mersault com a Rua dos Amantes.
Levantou-se rapidamente e se pôs a caminhar com a convicção de um soldado em campanha, rumo a um prostíbulo qualquer de uma cidade invadida. Para Arnaldo, os cigarros não precisavam necessariamente serem belos nem fortes, poderiam ser daqueles do tipo suave, em que a nicotina desce afagando de carinhos a garganta.
De toda forma, ali estava Arnaldo, estacionado defronte à banca de jornais, com moedas na mão e um plano em pleno prosseguimento. Tudo rigorosamente se desenrolava como havia planejado: seus braços, seu discurso, a mesa escolhida no bar, o clima, o conhaque que beberia, os cigarros, tudo !
Nenhuma minúcia ficara fora de seu planejamento e sua natural aversão a ordens de todo o tipo encontrava ali seu único, poderoso e contraditório óbice: quando se tratava de armar alguma coisa para a sua própria vida, Arnaldo era tão meticuloso que poderia ser chamado de caxias.
Tanto é verdade que quando olhou para o lado e viu aquele sujeito propositadamente mal vestido, com uma atitude falsa de segurar uma garrafa numa mão e um revólver na outra, olhando com afinco para dentro da banca de jornais, pensou consigo mesmo: "Esse mendigo não deveria estar aqui. Pelo menos não desse jeito."
Mal terminou seu pensamento e um estampido de disparo do revólver empunhado pelo mendigo rompeu com os naturais ruidos da rua, alcançando até mesmo a pacata vida de Arnaldo, que viu tombar, com a cabeça sangrando, o dono da banca de jornais, que nesse momento ainda segurava o maço de cigarros de nicotina suave.
(continua)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Um dia, lá pelo ano de 2007 ou 2006, bem acompanhado eu fui até uma favela no Parque Bristol, em São Paulo, lá onde funcionava o Centro Cultural Maloka, um lugar onde acontecia, aos sábados à noite, saraus de poesia.

Eu nunca fui lá muito frequentador de saraus, embora ache que quando feito com sincero espírito poético desavergonhado, encanta até a mais dura alma.

Na minha cabeça doentia, sarau mesmo é aquele em que a gente se senta numa taverna ao lado de Lord Byron e bebe vinho até cair.

Mas claro, a gente lê também e tenta entonar a voz conforme o ritmo dos versos, conforme a tensão que eles nos impõem, cambaleando entre a fina textura da voz que clama pelo amor perdido até a mais voraz escarrada de revolta.

Naquela noite a gente caminhou por vias estreitamente tortuosas da favela do Parque Bristol. Encravejadas umas nas outras, atropelando-se mutuamente as casas, muitas vezes achei que um simples escorregão me jogaria sentado no sofá da sala daquela família reunida que assistia a novela, dado que uma fina parede de papel as separava da tortuosidade das ruas.

Se bem que haveriamos de vencer essa dificuldade, pois que a poesia - mesmo que fora de moda, não há mais paciência para ela -havia se embrenhado também naquele lugar, como nós mesmos, vencendo pontes de madeira sobre córrego fétido e ruas anônimas.

Tudo já vencido, lá dentro não diferiu das coisas tortas. Mas que surpresa ! Um sarau integrado massivamente por crianças ! Nas mesas havia profusão de coisas: pincei Carlos Drummond, pesquei Vinicius de Moraes, odiei ver Manuel Bandeira em pedaços e me encantei com a dor de amor de Florbela Espanca. Mais um monte de outros: Ferreira Gullar, Álvares de Azevedo... Será que vi mesmo um Poe jogado em algum lugar ?

Nada havia de ruim nas vozes trêmulas e inseguras das crianças que se arriscavam nos versos. Também elas tinham de vencer tortuosidades várias de um mundo nascido para ser duro. Um alvoroço pela próxima leitura até que na minha vez eu preferi não ousar, mandei qualquer um de Drummond na certeza de que ninguém erra nessa escolha.

Eu nem sei quais daquelas criaturas ainda leem poesia, quais ainda vão a um sarau, qual vai ser poeta a expressar a dor de seu tempo. Vai saber. Que importa ? Se elas se lembrarem, daqui há muito tempo, que um dia leram poesia em voz alta...

Ora ! Eu me lembro de uma noite de minha infância em que escondi embaixo de meu colchão - como viria a fazer com algum baseado anos mais tarde - um livrinho que falava sobre um louco que se julgava cavaleiro e era apaixonado por Dulcinea, enquanto ouvia pérolas de seu fiel amigo.

E por que diabos fui me lembrar dessa remota lembrança ? Vai saber ! Acho que o mundo que vem pela frente deve ser tão tão merda, que eu desejo a todas elas que um dia se lembrem de que leram algo que poderia significar uma coisa diferente.

Elas podem estar encarceradas em penitenciárias ou em luxuosos palácios, mas como diz Rilke, mesmo um homem preso em uma cela horrível é capaz de olhar para dentro de si e resgatar as sensações e as histórias da infância.

Depois eu fui embora com o espírito algo leve. Poesias com vozes infantis. Tortuosidades. Paredes sem reboco.

Depois, mais tarde, ainda comi uma pizza.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A literatura salva e depois abandona

Iniciaram um diálogo rápido mas substancial, daqueles em que não há desperdício de palavras, rodeios ou passos em falso:

"O que é que você tá lendo nesse fim de ano ?", perguntou o nobre gaijin alemão.

Para o que ouviu a seguinte resposta: "hmmm... o mais relevante é que ando lendo os contos da Virginia Woolf. Logo o primeiro trata de duas irmãs que são educadas para o casamento e se deparam, em uma festa, com um outro tipo de mulher, uma mulher que se interessa pela vida, pela política, pelos pensamentos. O amor é apenas mais um departamento, não a loja toda."

"Parece bom realmente. Mas encontrar uma mulher assim também deve ser difícil..."

"Por isso que é vale a pena se refugir em contos... Lá acontece, ué ! Mas me diga, o que é que você está lendo agora ?"

"De relevante mesmo, coisa que tem marcado, é um livro de um escritor alemão contemporâneo. Basicamente é um livro que retrata como ele conseguiu se curar, se libertar, por meio da literatura!"

"Ah é ? Não posso negar que isso é interessante, pois que é real. Mas sempre suspeito de pessoas que se salvam por meio de qualquer coisa... mas...... me fale mais sobre esse alemão !"

"Não sei tanto assim. Mas sabe um cara que tem cerca de trinta anos, que passou por uma história amorosa, ou deveria dizer mesmo uma frustração amorosa, e que ficou tão mal com tudo isso, que resolveu contar sua história ? Pois então, é isso."

"E aí escreveu um livro..."

"É ! Escreveu um livro. A gente pode dizer que o cara se salvou por meio da literatura. E mais do que isso, um monte de gente se reconheceu na história dele, né, e aí o cara ficou conhecido e virou escritor de vez. É aquela coisa de sempre: o amor é tão óbvio que muitos se reconhecem nas histórias alheias."

"É a inevitável obviedade mesmo.... Mas sabe que é uma história encantadora ? Tem lá seu charme, não é? Imagine isso acontecendo comigo !"

O gaijin ironizou o doce sonho do amigo:

"Escritor paulistano que virou escritor porque tomou um pé na bunda da amada. Escreveu tanto mas tanto que várias pessoas igualmente frustradas como ele se enxergaram na história e compraram seu livro."

Rindo, o preterido escritor concordou: "Tem razão ! Mas eu deveria inserir alguns pontos que certamente o alemão desconhece: histórias de família, pecaminosas, sabe ? Nelson Rodrigues, meu caro..."

"Claro ! E aí você seria mais um a se salvar por meio da literatura... ainda que ficasse um pouco sujo com ela também. De toda forma, não é interessante um cara que tem mais ou menos nossa idade fazer isso ?"

"Realmente.... até se questiona se a literatura pode salvar de fato. Logo eu que desconfio de salvamentos... Mas é uma coisa interessante sim...afinal... foi por meio da literatura... Porra, vou confessar vai, é uma história bonita pra caralho. Esse alemão poderia ter se matado, virado crente, louco, sei lá. Mas objetivou sua história, elaborou suas frustrações e criou algo..."

"Sim...Há um mérito do cara... 'Salvar-se !' Não é para todo mundo..."

E antes que encerrassem a conversa, lembrou-se de um detalhe importante que havia lhe escapado à mente:

"Porra ! Já tava esquecendo. Não foi só a literatura, não ! Na mesma época que ele escreveu o livro, já estava com uma outra mulher também, coisa forte e tal..."

"Ah é ? Caralho... Você não deveria me dizer isso ! Quer dizer então que o filho da puta escreveu, tá certo, mas ao mesmo tempo ele já estava amando de novo ? Já tinha outra mulher... é isso ?"

"É isso aí..."

"Só vou dizer uma coisa, tá ? Vai tomar no cú ! Ninguém se salva é porra nenhuma ! Ah ! E foda-se a literatura também !"

Rindo muito, o gaijin construiu e descontruiu impunemente um sonho que não deveria jamais ter se esboçado naquela frágil criatura !

Despediram-se e foram embora. Decerto se sentiram mais leves - mesmo que mais frustrados - pois largaram a tal da literatura lá no chão.

Carregar peso?

Jamais !

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Cão

Se fosse antigamente, isso seria uma fotonovela. Nos tempos modernos é uma fotonovela mais sofisticada, com narração e trilha sonora. Cai meio de gaiato nessa história, mas o resultado me agradou também.

"Um cão. É isso que eu sou, um cão. Ele manda, eu ataco. Ele manda, eu paro… Merda acontece. Mas o salário paga bem. Não é pela grana. O negócio todo é não precisar pensar. É confortável ter alguém pensando por você, alguém que toma as decisões."

http://www.balaiobranco.com.br/2008/10/cao/

Ficha técnica:
Texto, Música e Edição:Rodrigo van Kampen
Fotografia:Carol Dargel
Narração:Thiago Scabello
Modelo:Alex Pantoja

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

guerra e paz

Fogos luminosos explodiam no ar, formando arcos coloridos que se espalhavam pelos céus como se subitamente estes tivessem ousado assumir o lugar das águas do mar.

Nas areias, de tudo: de Iemanjá a saltos desconcertados sobre as ondas, de garrafas que emporcalhavam a praia até resoluções irreais para reconfortar a mesmice.

O fato é que não havia nada de novo naquilo que de novo recomeçava.

Para cada fogo, para cada explosão, naquele reveillon de 2009, uma angústia inesperada se apoderava de meu peito, na medida em que a certeza de que a muitos e muitos espaços dali, fogos e explosões de verdade caiam como um inferno na terra, sob as cabeças de muitos.

Não é nada fácil encontrar algum pensamento próprio que seja seguro e isento de paixões potencialmente prejudiciais.

Nessa história lamentável do conflito bélico entre judeus israelenses e muçulmanos palestinos, que nesse exato momento ocorre sobretudo na pequena extensão de terra da Faixa de Gaza, minha impressão é que tudo - ou quase tudo - é incompreensível por um lado, um verdadeiro "diálogo de loucos", mas que é tudo também certo e esperado, por outro lado.

Difícil é a abstração da força descomunal que é a fé religiosa, exaltada pelos dois lados do conflito. Analisar a guerra atual apenas sob o ponto de vista religioso, embora ele seja importantíssimo, seria desconsiderar os demais fatores preponderantes: o político em primeiro lugar, seguido dos fatores econômicos e culturais.

Focar uma guerra como essa apenas do ponto de vista econômico e político, por sua vez, seria amplamente insuficiente diante do verdadeiro oxigênio em fogueira, que é a convicção teísta escancarada por todos os envolvidos.

Onde encontrar um ponto seguro para analisarmos a verdadeira tragédia que se manifesta numa bomba que explode em uma escola da ONU, matando crianças que não pediram para estar naquele lugar ? Onde encontrar um equilíbrio quando mísseis do Hamas, disparados a partir de instalações civis, igualmente mata israelenses do outro lado da fronteira ?

Podemos, sem sobra de dúvida, fixar um possível marco fundamental nesse conflito armado, que se deu exatamente na criação do Estado de Israel, no período pós-segunda guerra, sem que se atentasse com firmeza para o fato de que ali já era território ocupado pelos palestinos em tempos anteriores e que, retirá-los desse território para que viessem a ocupar sua periferia, seria uma estratégia inevitavelmente equivocada.

Um centro quase que exclusivamente judeu em meio a uma mar de descontentamento muçulmano seria a concretização máxima da renúncia a uma convivência pacífica e compartilhada do mesmo território, por populações com convicções diferentes. Nisso houve falha dos aliados vencedores, se não quisermos enxergar mesmo uma política claramente definida de escolha de um dos lados.

O fato é que não há mais volta - ao menos não uma volta sem sangue - e o Estado de Israel já está amplamente consolidado. Assim como os incontáveis palestinos que mais do que um povo retirado do território que ocupavam, se tornaram refugiados nas periferias da terra de onde outroram ocupavam.

O caminho da violência, fustigado pela fé religiosa de ambos os lados, nada mais faz do que expressar em balas e projéteis aquilo que deve ser mesmo insolúvel: uma fé não se compactua com a outra. Um nasce para odiar o outro.

Quem pode prever o rastro que se seguirá da atual guerra ? Se houver ainda dois lados ao final dela, quem poderá prever a carga de ódio germinada a partir do que acontece hoje aos nossos olhos ?

Como podemos escolher um dos lados, de forma segura, se cada qual se encontra imbuído da mais imbecil convicção religiosa a lhe motivar os sorrisos ao contabilizar os mortos do outro lado da fronteira ?

Se não há porto seguro, se não há lado que se possa escolher com alguma certeza, sem que essa escolha implique em reconhecer que há injustiças também pelo lado escolhido, que há vítimas e algozes em quaisquer dos lados, ainda que um lado mais do que outro, então a escolha deve ser - como já apontado por Marcos Nobre em sua coluna semanal na Folha de São Paulo - uma militância radical pela paz.

Pelo imediato cessar-fogo e trégua na absurda guerra que acontece hoje, para que com a intermediação de outros protagonistas mundiais, possa se estabelecer um patamar mínimo de negociação sem infligir baixas horríveis, sem mortes de crianças, com algum resquício de razão nessa verdadeira loucura que é esta guerra.

Voltaire - sempre ele - estava mesmo coberto de razão: as religiões seguem o binômio autoritarismo e conformismo. Quem nela está inserido deve se conformar aos ditames impostos sem questionamentos profundos. Quem nela não está inserido, deve ser excluído.

Militância radical pela paz não quer dizer discurso pacifista inconsequente e ingênuo. Mas você - eu - que não mataria qualquer um por um discurso maniqueísta, consegue dizer qual dos loucos é o menos louco ?