quinta-feira, 19 de junho de 2008

o velho escritor

Alguns episódios irrompem as lembranças de forma tão visceral, que sequer pode-se dizer que são lembranças, mas episódios revividos com a áspera brutalidade do real.

Éramos crianças naquela época. Vivíamos em bando e vivíamos em busca. Despertávamos então para as regras próprias de um bando de meninos, que viviam sua dupla vida de liberdade e opressão. Dentro das casas, fracos e quase sempre oprimidos. Fora delas, ganhavam um mundo à parte, um mundo grande e vasto. Com nossos códigos de conduta maniqueístas, nossos moralismos herdados, nossa masculinidade que clamava por parecer exacerbada, com a hierarquia que precisava ser respeitada.

Ah ! E também com nossas pequenas espertezas ! Jogados para viver numa rua nem diferente nem igual, em um bairro nem diferente nem igual, de uma periferia a mais da monstruosa São Paulo.

Era com indisfarçável esperteza, mas deveras com disfarçável vergonha, que cotidianamente o bando abordava aquele sujeito já meio gordo, de cabelos de algodão nas laterais, de óculos quadrados e grandes, de roupas abarrotadas, mas clássicas. Boina, calça social e sapatos, ar de inteligente.

Subia a rua e a ladeira com passos calmos, parecia pensativo, parecia afundado em meditações, ou em versos, ou em contos. Vivia em um mundo que não era o nosso, marcado pela dureza e pela consistência de uma pedra.

Era curioso e diferente. Enquanto todos que ali moravam se mostram à memória de hoje, como quase autômatos, com ele não. Ele era diferente. Ele subia a rua também, mas não simplesmente a subia. Ele pensava talvez em uma crônica, em uma história, criava qualquer coisa a partir daquele bando que diariamente encontrava-se à solta no mundo imenso e explorável que era a simples rua.

Era diferente dos demais. Não tinha o aspecto cansado do operário em fim de jornada getulista. Tampouco tinha o vigor dos passos dos mais jovens que ansiavam então por uma prancha de surf, ainda que vivendo na cidade. Ele tinha um ar diferente.

Só tempos depois, é que fiquei sabendo que o velho era escritor. Pensei que talvez fosse esse o motivo de sua aparência singular, de seus passos que pisavam aquele asfalto gasto mas que pareciam pisar em uma outra dimensão, em letras, em frases, em palavras, em sinônimos, em antíteses, em metáforas, em um mundo que não era o nosso.

Os velhos mais brutos dessa época assustavam os meninos com feições e gritos assustadores. Já os jovens batiam nos meninos por imposição, por simples razões hierárquicas.

Já o velho, não. Esse subia a rua e, com frequência, distribuia balas aos meninos. Era rodeado por um bando de moleques dos mais diversos tipos, das mais diversas famílias, que apenas tinham em comum a parca idade, a inocência que queriam destruir e o extremo e brutal acaso de estarem crescendo juntos, naquela rua e não em outra qualquer.

Era autêntica algazarra de meninos. E ainda que não fôssemos nada, e ainda que muitos de nós fôssemos seguir - em trágica e inocente ignorância - o rumo de uma vida que nos conduziria à mesmice ou às grades, éramos chamados de maravilhosos por uma boca sorridente.

Às vezes ganhávamos dinheiro, também. Não muito. Eram centavos, em verdade, mas era dinheiro. O velho nos dava algum dinheiro, enquanto subia a mesma rua que dominávamos como animais na selva. Dava dinheiro a nós, e esse dinheiro certamente faltava lá em cima, poucas acasas adiante da minha, pois sua esposa um dia indignou-se com os meninos. Quem eram esses que pediam e recebiam dinheiro do velho escritor ?

À noite, seus olhos eram vermelhos e úmidos. Eram como um lenço de uma viúva recente. Seu hálito era puro álcool. Seus passos eram mansos, mas passaram também depois a serem tortos.

Hoje penso que, se nós, meninos, sentiamo-nos muito espertos por receber balas e algum dinheiro, sutilmente o velho também arrancava algo de nós em troca. Talvez uma jovialidade e ansiedade de viver dos meninos, já naquela época fadada a morrer. Ele sabia disso.

Arrancava talvez alguma inspiração para algum conto. Se sim, ele estava certo. Tudo vale por um vômito de palavras a serem embrulhadas num papel.

A brutalidade real tocou-me quando encontrei seu livro, de poucas páginas e modesto, na estante ao lado de meu quarto. Uma data antiga e escrita à caneta lembrava o ano de 1986, e o "Tango Argentino" escrito pelo velho escritor, mostrava-se ali, na minha mão, como um item sagrado e mágico capaz de despertar reminiscências abandonadas na história.

No livro, há contos que não li.

Lembrei-me do desejo de imortalidade oculto que esconde a sete chaves um escritor. Vinte anos depois, o velho voltou a viver, subiu novamente a ladeira, seu hálito reacendeu-se.

Não havia mais meninos gritando e implorando por doces ou por trocados e a rua estava vazia, lamentando a ausência de vidas que se perderam na maturidade.

O livro na minha mão.

E o velho, naquele instante, imortal.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Sentiu um ímpeto violento afogar-lhe a garganta enquanto a língua seca e áspera se agitava no interior de sua boca, tal como uma cobra que serpea sua presa marcada para a morte.
Com as mãos agitadas e nervosas, tentava por meio de um pesado balançar, rememorar os versos que só anos depois lhe fariam sentido. Grudados na árida boca, as palavras recusavam-se terminantemente a serem cuspidas: ".... Transtornado, tornado louco pelo desespero. Não o consintas, meu amor, meu bem, digamos até logo agora....".
Um sorriso irônico permeado de tristeza. Repetiu a si mesmo:
"Não o consintas.....digamos até logo agora...", ordens inexoráveis para o início de passos duros e punhos cerrados, ao que se seguiram pequenos goles de ar que preenchiam o vazio dos pulmões ávidos por um louco estado arfante.
Ele simplesmente não podia mais se conter. Pensamentos incessantes massacravam sua cabeça, deixando rastros de culpa e orgulho:"Eu não era assim tão terrivelmente violento a ponto de desejar que cada corpo desses que passa por mim, seja alvo de pancadas, chutes e socos. Já fui sereno.... cantarolava por estas mesmas ruas. Já sorri sinceramente para todos estes seres desprezíveis que hoje me provocam náuseas...".
Com os olhos semi-cerrados e a tensão esculpida no rosto, incontáveis vincos afundavam e percorreriam toda sua face, esparramando-se como córregos fétidos que cortam bairros podres.
Andando pelas ruas, ainda se notava nele resquícios de um sujeito elegante. Ainda que a barra de sua calça folgada raspasse o chão, deixando o tecido carcomido pelos selvagens dentes do asfalto, e mesmo que sua camisa aberta e deformada por uma barriga que, proeminente, lançava-se adiante de seus passos, mulheres e pederastas olhavam-o a todo tempo.
Uma caça constante por troca de olhares que pudesse significar um resquício de humanidade naquele soldado selvagem. Soldado que batia violentamente seus pés calçados com sapatos esbranquiçados, no solo banhado de sangue invisível da tresloucada São Paulo.
No entanto, nenhum olhar o detinha. Pederastas sentiam que a violência e os pensamentos sanguinários que exalavam de seu corpo, poderiam ser melhor aproveitados em sessões de sexo marcado por couro e fetiches sombrios. As mulheres não enxergavam nesse corpo, outrora musculoso, e nessa face, outrora pacífica, nada além de um homem cuja alma poderia ser remediada com golpes de amor e de carinho, única forma de livrá-lo das maldições sentimentais, de amores corrompidos e de dores inexpugnadas.
Ainda assim. Olhavam. Desejavam. Corrompiam.
Ele mesmo nada fazia. Apenas uma volta pelo centro da cidade, em suas tortuosas vias. Uma infinidade de sangue, dor, sofrimento e consternação eram a matéria-prima de seus pensamentos e de seus desejos, insuportavelmente viscerais.
Sorriu de novo. Melancolia. A sequência dos versos rememorados foi despejada em sua cabeça sem qualquer prévio aviso: "...mas a mim nenhum som me importa afora o som do teu nome que eu adoro. E não me lançarei no abismo, e não beberei veneno, e não poderei apertar na têmpora o gatilho...".
Respirou fundo. Mais do que pequenos goles, um furacão de ar lhe preencheu os pulmões, com seu pensamento remoendo o plano: não se prolongariam, diriam até logo e diriam isso agora.
Odiariam-se, decerto. Culpariam-se mutuamente por tudo e por nada. Mas não beberia veneno e não estouraria seus miolos.
Desejou desfazer-se de seus pensamentos sanguinários, mas a postura de permanente combate infligia verdadeiro monopólio em seu coração.
Não foi por outra razão que ao avistar aquele esquálido sujeito apoiado em sua motocicleta, de peito aberto e um já insípido chiclete mascado na boca, desejou com ardor enfiar-lhe um soco nas costelas, de modo que este único impacto o faria dobrar-se em joelhos e mendigar clemência.
"Maldito !", diria com veemência a este sujeito dobrado no chão, mártir de todas as infelicidades que suportara. "Alguém deve pagar ! Pouco me importa quem !", sua boca balbuciava tais palavras enquanto afastava-se cada vez mais do sujeito e de sua motocicleta, que sorria tranquilamente enquanto observava os estranhos passantes.
Na esquina seguinte, novo tormento. Uma não sei qual sensação de punição se apoderou do rapaz quando uma bela prostituta nele lançou olhares de interesse. Ele tinha notas no bolso, notas essas que lhe conferiam segurança em si mesmo. "Se quiser um trago de algo qualquer, basta-me arrancar apenas uma dessas notas. Não dependo de ninguém." Com o sexo, poderia se pensar o mesmo. Se quisesse, um simples raspar de dedos no pequeno bolo de notas que recheava seu bolso, seria capaz de lhe colocar à disposição essa ou qualquer outra bela mulher.
Treparia violentamente. Não diria uma só palavra durante o coito. Contrairia todos seus músculos e ficaria brilhante de suor. Uma estátua de suor. Era como gostava de se imaginar. Apenas poucas notas que precisaria tirar de seu bolso, e pronto, lá estaria ela, nua, sedutora, voz suave, corpo delineado na mais artificial luz de um quarto horrendo.
Viria o gozo abrupto e selvagem. Urraria como lobo perdido de sua matilha. Após a estafa, e após o incrível vazio que sempre se apoderava de sua alma segundos após se desfalecer no seio de qualquer uma, estaria pronto para pagar pelo minuto de prazer.
Logo em seguida, o óbvio: teria um desprezo absoluto pela mulher. Frágil e vão. O desprezo pelo outro jamais o impediu de sentir igual desprezo por si mesmo.
Mas enquanto a prostituta o observava, decidiu nada fazer. Hoje ele não tiraria nota alguma de seu bolso. Hoje ele amaria poder arrastar essa ou qualquer outra que lhe cruzasse o caminho. Arrastaria pelos cabelos sem dó. Jogaria-a no chão e cuspiria em sua cara. "Você me dá nojo. Eu tenho nojo de amor a preço certo.", seria a frase ideal para terminar sua cena.
Mas apenas passou por ela e nada disse, mais uma vez.
Sentia uma raiva como há muito não tinha a chance de experimentar. Não havia episódio concreto a provocar tamanha fúria neste singelo dia de sangue não derramado, de agressões não consumadas, de coito violento e bestial não efetivado. Ele apenas via as pessoas nas ruas e elas lhe provocavam o mais profundo desgosto.
Precisou ir embora para não dar vazão a seu eu que clamava por expressão. Precisava controlar-se, ainda que renunciando a si mesmo.
No caminho de volta para sua maldita casa - ela nada era além de depósito de um autêntico lixo humano - pôs-se a completar, aos brados vigorosos e ensandecidos em meio a plena rua, a poesia que há muito havia lhe encantado:
"...Amanhã esquecerás que eu te pus num pedestal,

que incendiei de amor uma alma livre,

e os dias vãos - rodopiante carnaval -

dispersarão as folhas dos meus livros...

Acaso as folhas secas destes versos

far-te-ão parar,

respiração opressa ?"