quarta-feira, 5 de março de 2008

"O furo sereno e profundo invadiu as entranhas do peito, trazendo na faca pontiaguda e de bela lâmina, um sangue puro e íntegro que corria nos mais secretos vasos do coração. O grito que se seguiu ao furo, foi sucedido por outro e outro grito, e era grito quase inaudível, mas tão violento e intenso para aquele corpo de peito furado, corpo de herói vencido deitado sobre o mármore gélido e branco, que espasmos percorriam a extensão de sua carne mole estendida sobre a pedra.

Profundos lamentos e gemidos de dor preenchiam todos os espaços e buracos do ambiente, tal como um gás venenoso envolve em sua nefasta volatilidade, em um abraço letal, a todos aqueles que ousam respirar o ambiente em que ele perniciosamente se encontra.

O que se passou antes do furo retilíneo e impiedoso que estocou o peito do vencido, foi apenas um fúnebre ritual preparatório da sessão de julgamento e condenação do corpo, uma sinfonia melancólica que prenunciou o austero sofrimento de um derrotado.

Assim é que o ritual lento e obscuro se arrastou de forma viscosa e gordurosa, uma lesma inchada e pesada que atravessa a custo um túnel repleto de sebo. O corpo nu e liso, pálido como mármore, foi deitado sobre a cama de pedra branca. A cabeça do estúpido herói, sem cabelos, afundava o pequeno e maciço pedaço de madeira marrom que a sustentava. Ele poderia fugir, o herói estúpido. Nenhuma corda, nenhuma corrente, nenhum braço forte o prendia aquela dura cama, no entanto, sabia ele que seu crime havia sido deveras grave, e que a vergonha o perseguiria freneticamente até o último de seus dias, sendo talvez mais cruel do que a punição a que seria submetido naquela sessão solene e formal de julgamento.

Não havia mais tempo para nada. O crime praticado exigia punição e a platéia que assistia a tão triste solenidade, também não dispensaria o rigor de uma punição exemplar ao estúpido herói, para que este mesmo sentisse em sua carne a consequência de seu ato, e para que todas as outras pessoas pudessem para sempre se lembrar - e evitar semelhante ato - do triste fim de um criminoso.

Corpo estendido e platéia ávida. Só restaria então o carrasco entrar no ambiente em que a justiça prevaleceria sobre todo e qualquer mal. E isso não tardou a ocorrer. Com passos lentos e decididos, amparado pelos justos deuses, o carrasco avançou em direção ao corpo que clamava por punição. Suas firmes mãos exibiam orgulhosamente o instrumento pelo qual os céus e os deuses manifestariam a prevalência da justiça neste mundo: trazia ele consigo a faca de lâmina resplandecente e aguda, com sua ponta fina e delicada, que sequer se fazia notar ao penetrar a carne, suave e educada, mas que com o deslizar de seu corpo nas entranhas, produzia uma doce melodia crescente e monótona, até que a ponta fina e delicada se mostrasse como de fato era, uma singela porta de entrada para a lâmina mais grosseira que arrombaria a qualquer fibra.

A todo condenado é conferido o direito de ser sabedor do crime praticado. Se sobreviver, poderá usar sua história como exemplo de fracasso e ensinar também às gerações vindouras o quanto pode ser infeliz o homem que viola os princípios naturais facilmente encontráveis nas relações humanas.

E foi somente por isso que o carrasco ainda lhe outorgou esse direito, anunciando os motivos da condenação, enquanto postado ao centro da cama de pedra gélida, levantava vagarosamente seus braços, com as mãos unidas em torno do cabo da faca, como um só bloco uniforme de mãos, faca e vontade de punir: " Ó pálido e triste herói, teus gemidos soberanos de dor não esconderão o crime que cometeste, e nem mesmo a mais bondosa das criaturas poderia suportar a vergonha de seu ato. Receba esta punição como justa retribuição ao seu crime. Você está sendo julgado e condenado por ter acreditado no amor."

Entre o som da palavra amor e o deslizar doce da lâmina pontiaguda que estocou o derrotado, não houve solução de continuidade. Seu peito fechado tornou-se então um peito furado, e as mãos do carrasco haviam decretado e realizado a condenação, tendo sido suas mãos empurradas simultaneamente pela infinidade de deuses justos que abominavam o crime praticado pelo herói vencido.

Ao ato de justiça se seguiram aplausos da platéia. Revigorados em suas convicções, sentiam-se orgulhosos de presenciarem a eliminação do caos e do perigo introduzidos pelo herói derrotado, agora herói de peito furado e gemidos de dor vergonhosos.

Ele não chorou ao ser estocado pela faca justa. Porém, deveria. Mas também não sucumbiu ao golpe, não morreu com a punição recebida. Mas emitia grunhidos e gemidos de dor profunda, dor que não se apaga. Dali em diante, se sobrevivesse de fato, estaria ele irremediavelmente condenado por seu crime, vagando pelas ruas e pelas noites ostentando seu peito furado, triste marca do amor em que errou ao acreditar. "

E então eu acordei....respirando com sofreguidão.

Um comentário:

Ana Gehenna disse...

eu acreditei por muito tempo, com firmeza, que escrever era capaz de salvar. não sei se duvido disso ainda. vou ler com calma. valeu por comentar, por acompanhar essa coisa ae... hehe nem sei.
espero que vc teja bem, beijos.