segunda-feira, 10 de março de 2008

teorias da loucura

Eu a perdi sem mesmo nunca a ter visto. Nunca a vi. Nunca soube como desvia seu olhar quando inquieta, como prenuncia uma tristeza com os olhos, como disfarça um pensamento indesejado, como deseja um pensamento bom, como sua boca se desenha quando observa ou imagina alguma coisa bonita . Nunca a vi mexer os cabelos, nem chacoalhar as mãos por alguma ansiedade. Ela nunca respirou estando à minha frente e tampouco pude saber se as mágoas e as tristes palavras que explodiam de si, ressoavam em qualquer parte de seu corpo.

Mas se não a vi, eu a li. E se a li, eu a descobri.

E a descobri de início impulsionado pelo acaso, esta força poderosa cujo único poder reside no inesperado. Quando eu a li, deparei-me com um universo movediço e escorregadio, um pântano no qual deliberadamente me deixei afundar. E então pude conhecer suas palavras: densas, melancólicas, cheias de dor, mas reveladoras de uma certa confiança em um futuro que seria possível e que abarcaria em seus longos e pesados braços, uma vida menos corroída pela insensatez e pela objetividade do mundo que a estilhaçava dia após dia.

Foi assim que ela se mostrou, por meio de suas palavras e de suas frases, de textos que escancaravam aquela mulher real e palpável, a mulher que a imensidão de pessoas ao seu redor estava vergonhosamente incapacitada de perceber, ludibriada em um universo infinito de frivolidades e tolices.

A escritora talentosa surgiu de uma sensibilidade que clamava por expressão, de palavras que se suicidariam de desgosto, caso não fossem digeridas em sua essência: a luta de uma mulher por uma compreensão de si mesmo, a superar a ingenuidade que era típica de uma época.

Nesse conhecimento mútuo, a dialética se mostrou presente durante a troca de correspondências entre um curioso leitor e esta jovem escritora. Uma agradável divergência de mundos, valores e sonhos. Uma cisão nos problemas e nas desgraças, também. A cada assunto, um caminhão de palavras dirigidas ao império do outro - este reino inacessível e de caminho tortuoso - na tentativa amável de se fazer compreender em um universo de incompreensão.

"Se tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo", como diz Heráclito, a finitude também se mostrou presente. Mas, o que importa quanto tempo efetivamente durou ? A duração e o esforço pela compreensão não estavam no tempo decorrido, mas sim na força das palavras e no desejo de as ler.... Talvez tenhamos nos julgado amigos em algum momento desses. Amizade que não existiu em um olhar compartilhado ou em um resvalar de mãos, mas na projeção de sentimentos e esperanças pelas palavras.


Depois, chegou o mundo e seu fluxo titânico. E as palavras nada puderam contra eles. A pena secou. A ingenuidade cedeu lugar ao desencanto. Os sentimentos abriram caminho ao aprisionamento, de que seriam vítimas. A voz se transformou em silêncio ofensivo. E as lágrimas...estas ainda não se sabe...mas devem ter evaporado de onde brotavam com facilidade.

O mundo é um monstro que a tudo engole. Hoje ela sobrevive dentro desse mundo, dentro desse monstro, trabalhando e operando com as leis - ponto comum e distante que liga este leitor e esta escritora. Impossível dizer que fim deu às palavras, talvez um doloroso exercício de regurgitação que não se completa, talvez uma complicada renúncia de si mesmo, talvez uma perfeita adequação a um mundo inadequado.

Cada caminho reflete uma escolha, e escolhas não precisam ser definitivas. Este longo período de tempo em que não tivemos qualquer resquício de contato, provocou-me uma constatação: a escritora viveu em suas palavras e morreu em seu silêncio.

Mas esta morte é triste escolha.


Um comentário:

Unknown disse...

Então que li e reli esse texto inumeras vezes tentando achar exatamente onde me perdi... onde me perdi? Seja como for, retorno à cinzas, e dela ressurjo mais uma vez...