segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Meu primeiro encontro com Deus


"Visceral como a raiva, nada mais é, dado que a raiva drena a seiva da vida e da morte. Quando germinada de uma mentira, quando não furiosamente extirpada, transforma-se em monstro incontrolável em incessante procriação diária." W.M.R.

Naqueles tempos, havia uma espécie de erva daninha que já me era familiar desde a mais tenra infância.
Na praça defronte a minha casa pude a conhecer com suficiente profundidade, sendo que jamais havia me passado pela cabeça, até então, que uma simples e pequena planta, de caule quebradiço e raízes facilmente arrancáveis, pudesse carregar nome tão maldito como aquele.
Elas - as daninhas ervas - e isso era fato comprovado, multiplicavam-se flagrante e geometricamente por toda a pequena vastidão de terra que era a praça, nela se estendendo como lençol verde e homogêneo deitado deliberadamente sobre sua extensão.
Não era muito conveniente, também nesses tempos, os esforços diários para se extipar a praga que se chamou de daninha. Aprendi com meu pai que o pinheiro que acabávamos de plantar poderia não suceder na vida caso aquela profusão que era o lençol verde lograsse vitória na batalha cotidiana pelo espaço, pela água, pelos nutrientes e pela luz.
Assim é que a lembrança desses delicados tempos me impõe esforço hercúleo: a dificuldade para rememorá-los equivale à grande tarefa que consistia em preservar um espaço livre das ervas que prejudicavam a vida.
Mas no frescor da minha vida isso não era assim tão difícil. A tarefa de extipar as daninhadoras para preservar a vida do pinheiro me era extremamente gratificante. A gente - meu pai e eu - se esforçava unicamente para que pudessemos ver o florescimento natural da vida do pinheiro e nosso esforço era diariamente recompensado pela espera.
A gente arrancava mas também esperava. E quando esperavamos, tínhamos nossa recompensa.
Desde cedo constatei, por obra de meu pai, que bastaria esperar, após trabalhar, para que a alegria acontecesse.
Assim era com o pinheiro e assim deveria ser com as outras coisas. Não importava que para crescer, era necessário matar. Tal conta não se formulava nessa época: só com a morte das daninhas é que conseguiríamos a vida.
Por outro motivo, existiu um certo dia em que eu também tive de esperar. Dessa vez me foi exigido algo muito mais complicado e para o qual meu pai não havia me preparado diretamente. Eu já havia esperado outras vezes em tempos anteriores, e já havia insculpido em meu espírito virgem a convicção de que o esforço que precedia a espera era recompensador.
Talvez por isso, naquele dia de céu azul, um dia que era comum para o mundo inteiro, mas que se deitou sobre mim como sombra malévola de ilusão adquirida e perdida, a coisa não se sucedeu de forma igual.
Naquele dia ... dia que me estremece os lábios e que faz suar com largas gotas meus olhos riscados por ondas vermelhas ... eu também esperei pacientemente. Também me regozijava pela minha paciência aprendida, do pinheiro que merecia viver à erva que merecia morrer, eu esperava aquele momento em que sorriria pela evidência da vitória: a vida.
Não sei muito bem como ocorreu, diante da distância dos anos e da necessária couraça com a qual me vesti.
Sei apenas que a coisa toda aconteceu exatamente da mesma forma como eu fazia com as ervas daninhas: minhas mãos bastavam para arrancar convictamente suas raízes e seu caule. Em segundos, ela já não mais vivia. Em questão de segundos também meu pai foi tirado de alguém que mal lhe conheceu. Uma dor no braço esquerdo que se estendeu para um coração parado e que se abateu sobre uma família de emigrantes do norte.
Na nossa moira, os fios da vida haviam sido cortados sem hesitação.
Mas mesmo assim eu esperei, exatamente da mesma forma como havia aprendido. Acho que havia sim alguma boa intenção, alguma tentativa de remediar essa tragédia particular, a justificar as palavras daquela senhora que me consolava na minha pueril ignorância de quem não compreendia mas sentia o peso de uma morte que ainda então não lhe era lícito avaliar.
Há outro motivo para terem me pedido para esperar ? Corri para o lugar mais aberto da casa, o lugar no qual eu poderia ter a mais ampla visão do céu azul que mostrava apenas uma infinita parcela de sua vastidão. De lá eu poderia assistir ao retorno de meu pai, envolto em nuvens, rodeado de Deus e de santos, trazendo um pequeno pinheiro em suas mãos ele me daria um abraço, um abraço diferente de todos os outros que já havia recebido, dado que seria o primeiro abraço pós-morte dado nos braços de seu filho que sentia sua estranha falta, sua cotidiana lágrima.
A cada naco de nuvem que se aparentava a um pequeno borrão, até às mais complexas formas de navios e cabeças que passavam diante de meus olhos, eu esperava com paciência infinita. Passado um bom pedaço de tempo, confirmei que as nuvens - todas elas - haviam se esquecido de trazer meu pai de volta.
Nenhuma delas foi capaz de atender a promessa que havia sido feita para mim, por aquela senhora de coração bom mas de ignorância ímpar quanto ao efeito que uma simples espera provocaria em um ser habituado a esperar.
Deus não agiu e meu pai desapareceu para sempre. A promessa da ingênua senhora se descumpriu e isso ninguém é capaz de apagar.
Dias depois fui capaz de chorar pela promessa irreal, com minhas mãos segurando aquela pequena gravata envolta em discreta embalagem de cartolina azul. Presente que eu não esperei mais para dar, diante da proximidade da lata de lixo.
Naquele triste dia de nuvens bailando pelo céu azul, de promessa descumprida, de retorno irrealizado, de espera paciente, tive meu primeiro encontro com Deus.
Para nunca mais desejá-lo na vida.

3 comentários:

Anônimo disse...

Pode parecer bobagem, para uma pessoa cética e racional. Mas as pessoas e os animais, e as plantas, a vida vem para cá e, ao cumprir sua função, evolui e parte. A erva daninha teve sua função, o pinheiro...

Contrariamente ao que você me disse hoje à noite, eu adorei esse seu texto. Cada palavra me fez ter ainda mais vontade de ler a seguinte, e a sua usual angústia desta vez me contaminou... Talvez pela conversa sobre os medos pelos nossos queridos, não?

Parabéns.

Marcelo Guimarães disse...

Sem palavras!!!!
...

Alex P. disse...

Segundo um grande amigo, essa é a única coisa que interessa no mundo: falar sobre as memórias.

Taí uma delas...

Será que sou esquisito pela ausência do pai ?