quarta-feira, 16 de abril de 2008

o funeral

"Morreu triste". Era o que diziam os poucos que compareceram à homenagem última. As ínfimas rodas dos últimos que lhe restaram na vida, lamentavam o estado de espírito do morto no momento do crepúsculo definitivo. A curvatura de seus lábios secos e sem cor parecia mesmo confirmar a triste constatação, enquanto velas e flores tingiam com pesar o momento da despedida.

"Eu só tenho um objetivo na vida: tornar-me imutável", costumava dizer a si mesmo o morto, em seus frequentes momentos de solidão. Almejava ser apenas como um bloco. Um bloco maciço, denso, preenchido em si mesmo. "Não haverá qualquer espaço a ser completado", pensava ao fumar o cigarro noturno.

Já há muito o morto traçara esse como seu grande e total objetivo de vida. Alcançar um estado em que nada nem ninguém poderia mudá-lo. Ele seria uma coisa sólida, um bloco, como gostava de pensar. "De um bloco não se duvida nunca", afirmava, enquanto justificava seu pensamento imaginando a consistência inquebrável de um grande cubo pesado, no qual tudo que está dentro está trancafiado e sem saída, enquanto tudo que está fora não poderá jamais entrar.

Não havia eleito este plano ao acaso. Sabia ele de onde vinha sua obsessão em ser tido como imutável e definitivo. Ria por dentro ao imaginar que no dia de sua vitória, todos tentariam de toda forma modificá-lo, tentariam fazer dele qualquer outra coisa que não ele mesmo. E então desistiriam diante de sua solidez. "Fiz apenas isso e o que fiz está aqui dentro. O que não fiz, está fora de mim". Deleitava-se em sua convicção.

Tantos e tantos planos não concretizados. Amores não vividos por covardia. Frases e sentimentos que não expressou. Tudo fora ! Mas o que viveu e o que fez ninguém lhe arrancaria e nem modificaria. Seria sempre dele e esta seria a massa que preencheria o bloco que sonhava vir a ser.

"Quando morrer, todos verão quem eu sou de fato". Seu pensamento sobre o dia de sua glória, o dia de sua morte, havia um dia se originado de seu cansaço. Ele há muito havia cansado das traições que sofrera. Não por poucas vezes foi estilhaçado pela evidência de que não conhecia realmente ninguém, nem mesmo quem um dia julgara conhecer. Ignorava ainda que seu desejo de ser bloco crescia na medida em que matava a confiança que despejava como merda nos traidores.

Foi um tolo. A cada vez em que confiou, a cada vez em que esperou algo, foi derrubado pela nefasta ordem das coisas: tudo mudava. Todos mudavam.

Quando imaginara ter descoberto um ponto fixo no qual poderia se apoiar, no qual poderia confiar, então no instante seguinte o ponto desaparecia. Não poucas vezes desejara congelar as pessoas para que elas não mudassem, para que permanecessem as mesmas, tal como sua velha estante repleta de livros empoeirados permanecia a mesma há anos.

Foi assim que surgiu com vigor seu desejo e seu sonho de ser bloco. E seu desejo não exigia qualquer outra coisa senão o evento supremo: sua morte. Não lhe provocava espanto que o sonho de sua vida seria apenas alcançado na sua morte. Isso não passava de mero paradoxo.

Seria na rigidez cadavérica que alcançaria sua felicidade, o sumo de sua vida.

Os que acompanharam o dia da glória ignoravam a festa. Ignoravam vergonhosamente que aquele caixão sustentado por cavaletes, no qual repousava o corpo sólido, no qual se deitava o bloco, era um monumento e expressão da felicidade do morto. Dali em diante ele seria apenas um imutável e definitivo.

Não encontraram justificativa assim as poucas lágrimas derrubadas. Nem mesmo as velas e as flores, dado que não havia motivo para tristeza. Com sua morte, ele seria sempre o mesmo e todo e qualquer um, até mesmo os traidores, poderiam vê-lo sempre assim, não importando em que ponto da eternidade se encontrassem.

Tornou-se, enfim, um bloco sem vazios e imutável. Perene. Como desejara.

Encerradas as cerimônias, sobre o caixão se depositaram pás e mais pás de terra.

2 comentários:

Lúcia disse...

Orá, Arekusu san...

Um bloco... Não raras as vezes em que eu quis me tornar algo similar. Sem sentimentos, sem emoções... hmmm. Não vou ficar despejando aqui meus pensamentos sobre essa idéia. Mas que já passou pela minha cabeça, já passou...rs...

Parabéns mais uma vez!

Alex P. disse...

...Mas se o que mais desejo é justamente a idéia que provoca o despejar de pensamentos !
Despeje-os !

Se há similaridade com o que já pensou e já desejou, então você também "é bloco", curioso objeto e figura que sintetiza, para mim, a densidade e a imutabilidade.

Será que só na morte seremos "bloco" ?

Obrigado por ler !