terça-feira, 29 de abril de 2008

Chego de camisa amarrotada.
Nó frouxo na gravata torta.
Luz branca insuportavelmente alva.
Papéis, petições, intimações, revisões.
Palavras desconexas.
Abro o pequeno livro de Álvares de Azevedo,
fiel escudeiro do dia após dia.
Sinto o golpe da casualidade oculta em suas amarelas páginas,
que assim me falam:

Soneto

"Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti erguí meus olhos suspirando !...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flores !

De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...

Morro, morro por ti ! na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...

Sem que última esperança me conforte,
Eu - que outrora vivia ! - eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte !"

Com raiva nas mãos,
fechei o livro escrito pelo moleque.
Não se desnuda impunemente um homem.
Gravata arrancada.
Porta batida.
Fim do dia.

sábado, 26 de abril de 2008

golden lights

Era domingo e era noite. Junção que deveria ser proibida diante de sua capacidade de provocar tantos males e tristezas. De derrubar com crueldade, ainda mais, tantos heróis já derrotados.
Sentia-me pesado como há muito não sentia. A camiseta apertava o peito, os braços e a barriga, e todos eles em conjunto pareciam arquitetar uma forma de extrapolar os finos limites do tecido barato e já esgarçado.

Minhas pernas concorriam com as de um elefante: estranhamente inchadas e densas, a ponto de serem incapazes de levantar os pés oprimidos pelo tênis de sola velha e lisa, sinal de muitas andanças sem sentido pelas tortuosas ruas que levaram sempre a lugar nenhum.

A aumentar ainda mais a impossibilidade dos passos de elefante, na mão direita carregava uma sacola de plástico, pesada, que pendia para baixo com o peso - literal e metafórico - do livro "Ética" , de Spinoza, recém-adquirido em uma livraria das redondezas.

Na mente - essa substância pensante constantemente doentia - apenas dois objetivos me conferiam algum sentido para justificar ocupar tanto espaço no continente de insignificâncias do mundo: o primeiro e mais imediato era voltar o quanto antes para casa e o segundo, bem, este era uma profusão incompreensível de coisas e sentidos que se chocavam e se batiam, mas que indicavam de alguma forma um fim possível, uma saída para as amarguras e incertezas além da obviedade da bebida e das lágrimas.

Andava....caminhava....percorria..... diferentes expressões de um mesmo ato que subitamente adquirira o peso de uma montanha. A ladeira era nada convidativa e o corpo, manifestando sua vontade de ser autômato, mostrava à mente quem era que mandava de fato: passos obtusos e pesados. Esforço homérico para uma missão sem prêmio.
Diante da recusa do corpo que era nesse ato apenas pernas, mergulhei na mente, ou melhor, libertei-a para ser quem realmente era: uma tirana. E entreguei-me voluntária e dócilmente a ela, soberana rainha de tantos ímpetos incontroláveis.
E era esta rainha quem me ditava e obrigava a perseguir o segundo sentido: mas qual seria o sentido do pensamento na mistura louca de ética, geometria, felicidade, Deus, liberdade, contingência, extensão e pensamento ?
Uma interminável associação de outras idéias e conceitos se ligavam a cada um destes termos, e entender como Spinoza havia conciliado tantas coisas diferentes e conferido-lhes um sentido, que me deixara abalado desde a noite da quinta feira, era tarefa primordial.
Da profusão de conceitos embaralhados na mente, um ainda se destacava mais que outros: Spinoza e seu espírito geométrico procuravam, na "Ética", inteligir a conduta humana. Entre os passos gordos e sebosos que dava pela rua, achava engraçado e sorria ao pensar que um geômetra não se lastima nem se amargura por um triângulo não ter quatro lados. Ele apenas compreende tal fato.
Seria possível também para nós não nos lastimarmos e nem nos amargurarmos, mas simplesmente, compreendermos as condutas humanas, assim como um geômetra ?
Tais dúvidas e reflexões - que mesmo sem um espelho me davam a certeza de ostentar um ar boçal de intelectual - não me faziam esquecer do primeiro objetivo: os passos deveriam me levar para casa, ainda que as ruas estivessem sujas e cheias de gente, e ainda que os barulhos viessem de todos os lados como tiros trocados em uma guerra total.
Enfim conseguira vencer a ladeira e uma doce descida se iniciara para o deleite de meus passos. Restavam então talvez mais uns cem ou cento e vinte passos gordos até o carro e logo estaria superada a banal missão.
No entanto, ao alcançar o septuagésimo quinto passo - perdido em pensamentos - deitei meus olhos sobre uma luminosidade incrível, um sol artificial que iluminava as trevas do domingo noturno.
Cintilavam belamente as letras extravagantes, que em pleno ato de conspiração, formavam a expressão "Sara Nossa Terra", dourado e ofuscante, chamativo como um carro alegórico lindo mas quebrado.
"Ora, é uma igreja !", meditei. Meus passos gordos não impediram a mistura. Subitamente vi-me envolto à massa de pessoas. A luz dourada que iluminava candidamente as cabeças daquele sem número de pessoas, conferia-lhes um certo ar angelical, quase que formando uma auréola ao redor de cada uma delas.
Gente bonita e sorridente. Barbas bem-feitas e vestidos de gala. Tinham acabado de adorar a algo e eu acabava de adorá-los. Não era um afresco mas bem poderia ser. Uma cena que seria pintada com o máximo realismo, exaltando a perfeição submissa, a beleza que só se manifesta quando compreendida nos limites do deus regente.
Encantei-me. Surpreendeu-me em absoluto aquela luz, as cabeças iluminadas, os sorrisos largos e as roupas bem cortadas. Diminui a já parca velocidade para melhor apreciar tão magnífico espetáculo humano.Era tudo tão singelamente harmônico. Não concebia tamanha tranquilidade de espírito.

Eles então haviam adorado ao deus. Expurgado a todos os demônios. Cantaram e choraram ao seu ente predileto. Pediram a ele tudo que este mundo pode dar. Recuperaram-se de falências. Voltaram a ter carros importados. Sentiram a catarse. Arrependeram-se de todos os erros. E agora, de forma flagrante, com nítido intuito de perfurar meus olhos, deleitavam-se com o espírito leve e vazio, gozando do torpor de quem se afoga na bebida para esquecer de si.

Não sem alguma tristeza, senti ainda mais pesado o livro que carregava nas mãos. Não estaria eu em busca deste mesmo torpor ? Senti a leve vergonha despejar em meu rosto uma fina camada de tinta vermelha.
Eu era igual na busca mas divorciado no caminho. Minha felicidade.... esta eu sentia com pesar, um fardo de toneladas que apenas eu poderia carregar. Não a entregaria a nenhuma transcendência, embora sentisse que esta, ainda que criada, aliviaria-me de tanta responsabilidade.
Segurei ainda mais forte a sacola com a minha "Ética". Meus dedos apertavam as alças e estas insistiam em escorregar. Eram como areia nas minhas mãos.
Não havia garantia alguma para mim. Certeza alguma me conferia que um dia ostentaria um sorriso tão largo, vestiria uma roupa tão bela e que teria sobre minha cabeça uma luz, ainda que artificial.

Decerto minha ruína e minha falência eram irrecorríveis.
Quis evaporar-me rapidamente. A bela cena transformou-se em horror, e os sorrisos, as roupas e as luzes se borraram. Era agora uma distorção incompreensível. Apertei ainda mais a sacola e senti o livro mais pesado do que outrora.
Apressei os passos. A sacola decolava de minhas mãos......para frente....para trás....... nervosamente riscavam um arco no ar, bailando com o ritmo acelerado das minhas pernas.

Mas a sacola bailou demais, riscou demais. Perdeu-se. Chocou-se com um cone de plástico postado em meio a massa dos crédulos.
Não senti o choque, talvez tenha ouvido quando o cone se espatifou no chão. Mas o turbilhão dentro de mim impediu-me de qualquer reação, estava em outro mundo.

Com o cone no chão, esparramado, tendo sido derrubado pela sacola pesada que carregava a "Ética", ouvi claramente a minha sentença, dita por uma bela boca sorrindo, com um bom terno bem cortado, com um espírito vazio e leve, expurgado de todo o mal:

- "Eu não acredito nessas pessoas de São Paulo. O filho da puta nem olhou pra trás !".
No que foi complementado por uma outra alma bem-aventurada:

- "É foda né. Gente de cidade grande...."

sexta-feira, 18 de abril de 2008

tempo de voltar

à noite.
Sono e Spinoza. Ambos na cabeça
Quem será capaz um dia de alcançar a felicidade por si só ?
Quem será um dia forte para se libertar das correntes da superstição ?
Conversas noturnas no escuro da noite.
Poucas cervejas
Muita fumaça. Música ignorada.
A Universidade.
Há um monstro sempre por perto. Quase toda noite
Habita aquele prédio estranho cor sangue no qual se estuda a sucessão dos acontecimentos e das tragédias na linha do tempo.
Há diversidade e ela me agrada.
Sorrio.
Relógio e já se passam duas horas desde o início do novo dia
Corpo exaurido.
Mente que não cessa
Havia ainda a Rua do Matão. Escura
Dotada de densas árvores que amedrontam o escuro com seus braços retorcidos
Pequenas flores amarelas desfalecem no chão e
Conspiram para indicar um caminho
Percorro-o.
Sob o gélido ar da noite que não assusta me lanço
Corro.
Pés que apenas fugazmente tocam o chão de flores
Eles querem flutuar
Corro.
Suor na fronte. Sal na boca
Arranco a camiseta como quem arranca um tumor.
Desejo meu torso nú
e minhas mãos o tocam
É sólido.
Está gélido
Esgoto-me
Sem ar.
Com ardor na face
Sorrio.
Era tempo de voltar para casa

quarta-feira, 16 de abril de 2008

o funeral

"Morreu triste". Era o que diziam os poucos que compareceram à homenagem última. As ínfimas rodas dos últimos que lhe restaram na vida, lamentavam o estado de espírito do morto no momento do crepúsculo definitivo. A curvatura de seus lábios secos e sem cor parecia mesmo confirmar a triste constatação, enquanto velas e flores tingiam com pesar o momento da despedida.

"Eu só tenho um objetivo na vida: tornar-me imutável", costumava dizer a si mesmo o morto, em seus frequentes momentos de solidão. Almejava ser apenas como um bloco. Um bloco maciço, denso, preenchido em si mesmo. "Não haverá qualquer espaço a ser completado", pensava ao fumar o cigarro noturno.

Já há muito o morto traçara esse como seu grande e total objetivo de vida. Alcançar um estado em que nada nem ninguém poderia mudá-lo. Ele seria uma coisa sólida, um bloco, como gostava de pensar. "De um bloco não se duvida nunca", afirmava, enquanto justificava seu pensamento imaginando a consistência inquebrável de um grande cubo pesado, no qual tudo que está dentro está trancafiado e sem saída, enquanto tudo que está fora não poderá jamais entrar.

Não havia eleito este plano ao acaso. Sabia ele de onde vinha sua obsessão em ser tido como imutável e definitivo. Ria por dentro ao imaginar que no dia de sua vitória, todos tentariam de toda forma modificá-lo, tentariam fazer dele qualquer outra coisa que não ele mesmo. E então desistiriam diante de sua solidez. "Fiz apenas isso e o que fiz está aqui dentro. O que não fiz, está fora de mim". Deleitava-se em sua convicção.

Tantos e tantos planos não concretizados. Amores não vividos por covardia. Frases e sentimentos que não expressou. Tudo fora ! Mas o que viveu e o que fez ninguém lhe arrancaria e nem modificaria. Seria sempre dele e esta seria a massa que preencheria o bloco que sonhava vir a ser.

"Quando morrer, todos verão quem eu sou de fato". Seu pensamento sobre o dia de sua glória, o dia de sua morte, havia um dia se originado de seu cansaço. Ele há muito havia cansado das traições que sofrera. Não por poucas vezes foi estilhaçado pela evidência de que não conhecia realmente ninguém, nem mesmo quem um dia julgara conhecer. Ignorava ainda que seu desejo de ser bloco crescia na medida em que matava a confiança que despejava como merda nos traidores.

Foi um tolo. A cada vez em que confiou, a cada vez em que esperou algo, foi derrubado pela nefasta ordem das coisas: tudo mudava. Todos mudavam.

Quando imaginara ter descoberto um ponto fixo no qual poderia se apoiar, no qual poderia confiar, então no instante seguinte o ponto desaparecia. Não poucas vezes desejara congelar as pessoas para que elas não mudassem, para que permanecessem as mesmas, tal como sua velha estante repleta de livros empoeirados permanecia a mesma há anos.

Foi assim que surgiu com vigor seu desejo e seu sonho de ser bloco. E seu desejo não exigia qualquer outra coisa senão o evento supremo: sua morte. Não lhe provocava espanto que o sonho de sua vida seria apenas alcançado na sua morte. Isso não passava de mero paradoxo.

Seria na rigidez cadavérica que alcançaria sua felicidade, o sumo de sua vida.

Os que acompanharam o dia da glória ignoravam a festa. Ignoravam vergonhosamente que aquele caixão sustentado por cavaletes, no qual repousava o corpo sólido, no qual se deitava o bloco, era um monumento e expressão da felicidade do morto. Dali em diante ele seria apenas um imutável e definitivo.

Não encontraram justificativa assim as poucas lágrimas derrubadas. Nem mesmo as velas e as flores, dado que não havia motivo para tristeza. Com sua morte, ele seria sempre o mesmo e todo e qualquer um, até mesmo os traidores, poderiam vê-lo sempre assim, não importando em que ponto da eternidade se encontrassem.

Tornou-se, enfim, um bloco sem vazios e imutável. Perene. Como desejara.

Encerradas as cerimônias, sobre o caixão se depositaram pás e mais pás de terra.

sábado, 12 de abril de 2008

domingo de feira no bairro

O rapaz não muito resistiu, pois quando sua tão acalantada - por ele mesmo, ora - virtude se expõe a terceiros, ruboriza-se, curva-se em sua impotência, no exato mesmo momento em que um bilhete com ordem superior lhe ordenava imperiosamente: os tomates ! Os tomates verdes para salada !

O ambiente prosaico da feira revelava uma incômoda igualdade entre os transeuntes, mergulhados no redemoinho rodopiante que vai volta, sobe desce, envolvendo a todos como o rastejar de mil serpentes que se roçam e se tocam e se deslizam. Essa era a multidão deslizante.

No murmurinho de pano de fundo, perdidos entre quilos e números e moedas, e multiplicações das lições esquecidas da escola e seus famigerados “problemas”, pessoas passam ouvindo rimas, combinações, gritos, livres –não tão livres– associações entre as pêras e o decote daquela senhorita que passa rebolante meditando sobre os limões.

A bonita paga, leva as frutas consigo e ganha um sorriso. Se for esbelta em exagero então leva também uma rima, prometendo os mil e um prazeres do casamento que não vai ser realizado, porque as frutas são de todos e o fruteiro não pode se casar com todas as esbeltas que lhe atravessam a vista porque ele não é de nenhuma delas.

O redemoinho rodopiante roda. As mil serpentes rastejam. E nelas se esconde o contingente absoluto, aquele evento que poderia muito bem não ter acontecido justamente porque aconteceu. E ele aconteceu quando o rapaz foi atravessado e cruzado pela imagem das duas bolas de fogo-verde envolto em um emaranhado alinhado de fios vermelhos-quente. Esse era o conjunto. De juventude transbordante. De sacola pintada no ombro. De pronto acompanhada daquela que lhe antecedia no tempo, que o rapaz jurou sequer ter visto com nitidez tamanha a potência de luz emitida pela dona dos olhos bolas de fogo-verde.

Incêndio !

Um quilo, duas unidades, quatro bacias, três saquinhos. Notas, moedas, chaves chacoalharam no bolso nervoso. As operações matemáticas singelas tornaram-se em um instante complicadíssimos enigmas matemáticos não solucionáveis mesmo pela teoria do caos. Pois o caos era ali e aquela hora.

O troco veio errado e o sorriso irônico do grande fruteiro guardião-mor das escarolas enfileiradas o dilacerou:

- “Desculpe, meu senhor”, disse-lhe o rapaz. “Fui atravessado por um raio, por um tilintar de luzes fogo-verde que me fez perder as forças porque tão dignas do Belo platônico, do Belo, aquele os gregos acreditavam que os espíritos tinham uma oportunidade única de apreciar, no momento exato em que encarnariam no corpo do homem ou da mulher ao iniciar sua jornada na vida”.

Todo o Belo posterior era fugaz e fugidiço. Mas na verdade ele não disse mesmo nada, e tudo então ficou aprisionado em sua vontade, tendo ele somente sorrido envergonhadamente, achando ser melhor não falar do Belo ao fruteiro.

Do Belo contemplado para a fuga que era a melhor saída. Plano meticulosamente traçado enquanto o peso de exatas quinze bananas pendia seu braço para baixo, e enquanto a senhora de olhos riscados com giz arrancava, toda impiedosa, as três bananas que excediam a dúzia, não sem antes sorrir maquiavelicamente ante ao poder que ela tinha sobre a penca.

Mas o plano eraé que ele sairia caminhando a passos largos e rápidos, mesmo tendo suas pernas pesando cem quilos cada uma, e uma vez que conseguisse equilibrar rigorosamente as frutas, legumes e verduras entre as duas grandes e desajeitadas sacolas que trazia consigo, de modo que os tomates e as pêras de um lado, seriam equilibradas pelas maçãs e bananas de outro, o que evitaria o chacoalhar descontrolado das mãos ao improvável cruzar (oh não !) com as bolas de fogo-verde em meio ao emaranhado de fios vermelho-quente: Ela !

Passo a passo os passos foram dados. Pela calçada exterior, fora do alcance das mil serpentes que serpejavam pelas ruas, outra não era sua missão: fugir e andar até abrigar-se do perigo que era aquela rubor causado pelo par de olhos de bolas de fogo-verde, deveras encantador e resguardada pela matre que mal pudera ser percebida pois ofuscada pelo brilho em essência que vinha depois.

A trilha da volta, com os braços parcamente equilibrados pelas sacolas a a...n...d....a...r.... Ignorando sabiamente que as fulgurantes bolas de fogo-verde, em meio ao emaranhado de fios vermelho-quente: Ela !, tinha também a capacidade de se mexer e de se deslocar sinuosamente como um som de harpa, e de jogar, com seu olhar, seus raios brilhantes de cristais de gelo para os lados, para o lado em que ele estava, indefeso, e assim foi feito, e assim seu olhar o congelou de imediato, e ele teve a certeza que as bolas de fogo-verde não queimavam mas sim congelavam, porque também seus braços trincaram e assim as sacolas se espatifaram no chão e o doce mamão tão mal escolhido amassou-se ferindo sua pele amarela.

Ela caminhou até ele. Ele desistiu. Congelou. Amoleceu. E tentou não dizer mas lembrou-se que a frase inesquecível é sempre aquela que é dita e a frase não dita é aquela que não se concretizou, e ficou trancafiada na escuridão sem saída do eu. Morreu porque nunca existiu.

Precisou balbuciar a voz afônica -e assim o fez - e pensou no Belo, e duvidou de Platão. Não seria apenas uma única vez sua contemplação, pois a beleza havia lhe invadido desde sempre e se mostrado ali em meio ao aroma de doces frutas e peixes mortos. A frase que tremulou no ar era óbvia, mas a obviedade de sua beleza acabou com toda a obviedade do que foi dito (ele quis o telefone...).

Um leve estalar na face que ecoou pelo sempre e a dor da maldição da memória falha daquele que não decorou a singela seqüência algarítmica complicada por haver sido atingido pelos raios brilhantes das bolas de fogo-verde.

.... (Ínterim. Melhor então Interstício.)

Tuuuuu............. -

-Personagem desconhecido. “Não mora ninguém aqui com tal nome.”, anunciou a voz anônima afoita. Ele desligou e pensou. Então está tudo normal. Mas os braços permaneceram amolecidos e as bolas de fogo-verde atormentaram-lhe no dia e na noite.

Saberá ele o fim ?

(escrito em Julho/2004)

quinta-feira, 10 de abril de 2008


Marvin Gaye
Muito prazer em conhecê-lo, de verdade, apenas agora.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

pequena nota sobre a relação entre náusea e angústia em Sartre

Na filosofia e na literatura sartriana, as figuras da náusea e angústia possuem sentidos diferenciados, não sendo necessário recorrer diretamente a Heidegger para buscar uma certa compreensão sobre esses dois pontos em Sartre.

A náusea é uma figura literária criada por Sartre para expressar o fenômeno filosófico da contingência ou facticidade da existência, ou seja, de que não existe uma razão, um sentido "a priori", para explicar a existência de qualquer coisa que seja. Se estamos hoje aqui, vivendo essa vida e não outra qualquer, isso não passa de uma contingência da qual não participamos minimamente ao nascer. Simplesmente nascemos.

Em relação às coisas, o mesmo fenômeno da gratuidade e da falta de sentido ocorre, com o acréscimo de que as coisas, os objetos, são entes em-si, acabados e totalizados, que prescindem de qualquer outra compreensão. Os objetos e as coisas não precisam da consciência para serem qualquer coisa, eles simplesmente o são. E o são por pura contingência.

Essa compreensão da contingência da existência humana e das coisas é definida por Sartre po meio da expressão literária náusea, bastando para isso nos lembrar das passagens do romance "A Náusea" em que Roquentin por diversas vezes se vê horrorizado com as experiências mais cruas: a árvore e sua raiz no parque, sua imagem perante o espelho etc....

Já o conceito de angústia remete às consequências da liberdade irrestrita do homem. Se o homem é completamente livre e plenamente responsável por sua vida, se apenas ele é responsável por ser aquilo que é, então a todo momento as escolhas que faz definem não apenas a si próprio, mas para Sartre, as escolhas vinculam a todo os outros homens.

Ao escolher, o homem vincula a si mesmo e a toda a humanidade. Um exemplo clássico em Sartre: um jovem com a mãe doente e sozinha está em dúvida se deve se juntar aos resistentes para derrotar o nazismo, sendo que isso significa abandonar a mãe que, sozinha, certamente falecerá.

O que ele deveria escolher ? O amor pela mãe e renunciar à luta ? Ou escolher a luta e renunciar ao amor pela mãe ? Tal situação demonstra de forma bem clara o sentido da "maldição" da liberdade humana. Qual critério adotar em uma situação como essa ? Qual tábua de valores ele deveria se utilizar para responder a tal questão ?

Em primeira e última análise, o homem está só, deve fazer uma escolha da qual não há resposta ou caminho a ser seguido, e ao fazer essa escolha, seja ela qual for, estará vinculando com seu ato não apenas a si próprio, mas a toda a humanidade. Qualquer escolha que fizer mostrará aos outros homens como "o homem deve ser".

Essa constatação da responsabilidade sobre si mesmo, e que ao se escolher, o homem escolhe a todos os outros homens, gera o que Sartre definiu como angústia, consequência natural da liberdade humana.

Estabelecidos minimamente os caracteres gerais das duas figuras, é possível traçar uma singela relação entre náusea e angústia.

Ao se dar conta da contingência das coisas, da completude dos objetos em-si, e da total incompletude das homem (um ente "para-si"), este se dá conta de que a completude da qual não irá gozar nunca (o homem jamais será um ente com fundamento em si mesmo), está evidenciada pelas inúmeras escolhas que precisará fazer em sua vida, e ao escolher a qualquer coisa, como acima dito, escolhe não apenas a si mesmo mas a toda a humanidade, gerando o sentimento de angústia.