O rapaz não muito resistiu, pois quando sua tão acalantada - por ele mesmo, ora - virtude se expõe a terceiros, ruboriza-se, curva-se em sua impotência, no exato mesmo momento em que um bilhete com ordem superior lhe ordenava imperiosamente: os tomates ! Os tomates verdes para salada !
O ambiente prosaico da feira revelava uma incômoda igualdade entre os transeuntes, mergulhados no redemoinho rodopiante que vai volta, sobe desce, envolvendo a todos como o rastejar de mil serpentes que se roçam e se tocam e se deslizam. Essa era a multidão deslizante.
No murmurinho de pano de fundo, perdidos entre quilos e números e moedas, e multiplicações das lições esquecidas da escola e seus famigerados “problemas”, pessoas passam ouvindo rimas, combinações, gritos, livres –não tão livres– associações entre as pêras e o decote daquela senhorita que passa rebolante meditando sobre os limões.
A bonita paga, leva as frutas consigo e ganha um sorriso. Se for esbelta em exagero então leva também uma rima, prometendo os mil e um prazeres do casamento que não vai ser realizado, porque as frutas são de todos e o fruteiro não pode se casar com todas as esbeltas que lhe atravessam a vista porque ele não é de nenhuma delas.
O redemoinho rodopiante roda. As mil serpentes rastejam. E nelas se esconde o contingente absoluto, aquele evento que poderia muito bem não ter acontecido justamente porque aconteceu. E ele aconteceu quando o rapaz foi atravessado e cruzado pela imagem das duas bolas de fogo-verde envolto em um emaranhado alinhado de fios vermelhos-quente. Esse era o conjunto. De juventude transbordante. De sacola pintada no ombro. De pronto acompanhada daquela que lhe antecedia no tempo, que o rapaz jurou sequer ter visto com nitidez tamanha a potência de luz emitida pela dona dos olhos bolas de fogo-verde.
Incêndio !
Um quilo, duas unidades, quatro bacias, três saquinhos. Notas, moedas, chaves chacoalharam no bolso nervoso. As operações matemáticas singelas tornaram-se em um instante complicadíssimos enigmas matemáticos não solucionáveis mesmo pela teoria do caos. Pois o caos era ali e aquela hora.
O troco veio errado e o sorriso irônico do grande fruteiro guardião-mor das escarolas enfileiradas o dilacerou:
- “Desculpe, meu senhor”, disse-lhe o rapaz. “Fui atravessado por um raio, por um tilintar de luzes fogo-verde que me fez perder as forças porque tão dignas do Belo platônico, do Belo, aquele os gregos acreditavam que os espíritos tinham uma oportunidade única de apreciar, no momento exato em que encarnariam no corpo do homem ou da mulher ao iniciar sua jornada na vida”.
Todo o Belo posterior era fugaz e fugidiço. Mas na verdade ele não disse mesmo nada, e tudo então ficou aprisionado em sua vontade, tendo ele somente sorrido envergonhadamente, achando ser melhor não falar do Belo ao fruteiro.
Do Belo contemplado para a fuga que era a melhor saída. Plano meticulosamente traçado enquanto o peso de exatas quinze bananas pendia seu braço para baixo, e enquanto a senhora de olhos riscados com giz arrancava, toda impiedosa, as três bananas que excediam a dúzia, não sem antes sorrir maquiavelicamente ante ao poder que ela tinha sobre a penca.
Mas o plano eraé que ele sairia caminhando a passos largos e rápidos, mesmo tendo suas pernas pesando cem quilos cada uma, e uma vez que conseguisse equilibrar rigorosamente as frutas, legumes e verduras entre as duas grandes e desajeitadas sacolas que trazia consigo, de modo que os tomates e as pêras de um lado, seriam equilibradas pelas maçãs e bananas de outro, o que evitaria o chacoalhar descontrolado das mãos ao improvável cruzar (oh não !) com as bolas de fogo-verde em meio ao emaranhado de fios vermelho-quente: Ela !
Passo a passo os passos foram dados. Pela calçada exterior, fora do alcance das mil serpentes que serpejavam pelas ruas, outra não era sua missão: fugir e andar até abrigar-se do perigo que era aquela rubor causado pelo par de olhos de bolas de fogo-verde, deveras encantador e resguardada pela matre que mal pudera ser percebida pois ofuscada pelo brilho em essência que vinha depois.
A trilha da volta, com os braços parcamente equilibrados pelas sacolas a a...n...d....a...r.... Ignorando sabiamente que as fulgurantes bolas de fogo-verde, em meio ao emaranhado de fios vermelho-quente: Ela !, tinha também a capacidade de se mexer e de se deslocar sinuosamente como um som de harpa, e de jogar, com seu olhar, seus raios brilhantes de cristais de gelo para os lados, para o lado em que ele estava, indefeso, e assim foi feito, e assim seu olhar o congelou de imediato, e ele teve a certeza que as bolas de fogo-verde não queimavam mas sim congelavam, porque também seus braços trincaram e assim as sacolas se espatifaram no chão e o doce mamão tão mal escolhido amassou-se ferindo sua pele amarela.
Ela caminhou até ele. Ele desistiu. Congelou. Amoleceu. E tentou não dizer mas lembrou-se que a frase inesquecível é sempre aquela que é dita e a frase não dita é aquela que não se concretizou, e ficou trancafiada na escuridão sem saída do eu. Morreu porque nunca existiu.
Precisou balbuciar a voz afônica -e assim o fez - e pensou no Belo, e duvidou de Platão. Não seria apenas uma única vez sua contemplação, pois a beleza havia lhe invadido desde sempre e se mostrado ali em meio ao aroma de doces frutas e peixes mortos. A frase que tremulou no ar era óbvia, mas a obviedade de sua beleza acabou com toda a obviedade do que foi dito (ele quis o telefone...).
Um leve estalar na face que ecoou pelo sempre e a dor da maldição da memória falha daquele que não decorou a singela seqüência algarítmica complicada por haver sido atingido pelos raios brilhantes das bolas de fogo-verde.
.... (Ínterim. Melhor então Interstício.)
Tuuuuu............. -
-Personagem desconhecido. “Não mora ninguém aqui com tal nome.”, anunciou a voz anônima afoita. Ele desligou e pensou. Então está tudo normal. Mas os braços permaneceram amolecidos e as bolas de fogo-verde atormentaram-lhe no dia e na noite.
Saberá ele o fim ?
(escrito em Julho/2004)