sábado, 26 de abril de 2008

golden lights

Era domingo e era noite. Junção que deveria ser proibida diante de sua capacidade de provocar tantos males e tristezas. De derrubar com crueldade, ainda mais, tantos heróis já derrotados.
Sentia-me pesado como há muito não sentia. A camiseta apertava o peito, os braços e a barriga, e todos eles em conjunto pareciam arquitetar uma forma de extrapolar os finos limites do tecido barato e já esgarçado.

Minhas pernas concorriam com as de um elefante: estranhamente inchadas e densas, a ponto de serem incapazes de levantar os pés oprimidos pelo tênis de sola velha e lisa, sinal de muitas andanças sem sentido pelas tortuosas ruas que levaram sempre a lugar nenhum.

A aumentar ainda mais a impossibilidade dos passos de elefante, na mão direita carregava uma sacola de plástico, pesada, que pendia para baixo com o peso - literal e metafórico - do livro "Ética" , de Spinoza, recém-adquirido em uma livraria das redondezas.

Na mente - essa substância pensante constantemente doentia - apenas dois objetivos me conferiam algum sentido para justificar ocupar tanto espaço no continente de insignificâncias do mundo: o primeiro e mais imediato era voltar o quanto antes para casa e o segundo, bem, este era uma profusão incompreensível de coisas e sentidos que se chocavam e se batiam, mas que indicavam de alguma forma um fim possível, uma saída para as amarguras e incertezas além da obviedade da bebida e das lágrimas.

Andava....caminhava....percorria..... diferentes expressões de um mesmo ato que subitamente adquirira o peso de uma montanha. A ladeira era nada convidativa e o corpo, manifestando sua vontade de ser autômato, mostrava à mente quem era que mandava de fato: passos obtusos e pesados. Esforço homérico para uma missão sem prêmio.
Diante da recusa do corpo que era nesse ato apenas pernas, mergulhei na mente, ou melhor, libertei-a para ser quem realmente era: uma tirana. E entreguei-me voluntária e dócilmente a ela, soberana rainha de tantos ímpetos incontroláveis.
E era esta rainha quem me ditava e obrigava a perseguir o segundo sentido: mas qual seria o sentido do pensamento na mistura louca de ética, geometria, felicidade, Deus, liberdade, contingência, extensão e pensamento ?
Uma interminável associação de outras idéias e conceitos se ligavam a cada um destes termos, e entender como Spinoza havia conciliado tantas coisas diferentes e conferido-lhes um sentido, que me deixara abalado desde a noite da quinta feira, era tarefa primordial.
Da profusão de conceitos embaralhados na mente, um ainda se destacava mais que outros: Spinoza e seu espírito geométrico procuravam, na "Ética", inteligir a conduta humana. Entre os passos gordos e sebosos que dava pela rua, achava engraçado e sorria ao pensar que um geômetra não se lastima nem se amargura por um triângulo não ter quatro lados. Ele apenas compreende tal fato.
Seria possível também para nós não nos lastimarmos e nem nos amargurarmos, mas simplesmente, compreendermos as condutas humanas, assim como um geômetra ?
Tais dúvidas e reflexões - que mesmo sem um espelho me davam a certeza de ostentar um ar boçal de intelectual - não me faziam esquecer do primeiro objetivo: os passos deveriam me levar para casa, ainda que as ruas estivessem sujas e cheias de gente, e ainda que os barulhos viessem de todos os lados como tiros trocados em uma guerra total.
Enfim conseguira vencer a ladeira e uma doce descida se iniciara para o deleite de meus passos. Restavam então talvez mais uns cem ou cento e vinte passos gordos até o carro e logo estaria superada a banal missão.
No entanto, ao alcançar o septuagésimo quinto passo - perdido em pensamentos - deitei meus olhos sobre uma luminosidade incrível, um sol artificial que iluminava as trevas do domingo noturno.
Cintilavam belamente as letras extravagantes, que em pleno ato de conspiração, formavam a expressão "Sara Nossa Terra", dourado e ofuscante, chamativo como um carro alegórico lindo mas quebrado.
"Ora, é uma igreja !", meditei. Meus passos gordos não impediram a mistura. Subitamente vi-me envolto à massa de pessoas. A luz dourada que iluminava candidamente as cabeças daquele sem número de pessoas, conferia-lhes um certo ar angelical, quase que formando uma auréola ao redor de cada uma delas.
Gente bonita e sorridente. Barbas bem-feitas e vestidos de gala. Tinham acabado de adorar a algo e eu acabava de adorá-los. Não era um afresco mas bem poderia ser. Uma cena que seria pintada com o máximo realismo, exaltando a perfeição submissa, a beleza que só se manifesta quando compreendida nos limites do deus regente.
Encantei-me. Surpreendeu-me em absoluto aquela luz, as cabeças iluminadas, os sorrisos largos e as roupas bem cortadas. Diminui a já parca velocidade para melhor apreciar tão magnífico espetáculo humano.Era tudo tão singelamente harmônico. Não concebia tamanha tranquilidade de espírito.

Eles então haviam adorado ao deus. Expurgado a todos os demônios. Cantaram e choraram ao seu ente predileto. Pediram a ele tudo que este mundo pode dar. Recuperaram-se de falências. Voltaram a ter carros importados. Sentiram a catarse. Arrependeram-se de todos os erros. E agora, de forma flagrante, com nítido intuito de perfurar meus olhos, deleitavam-se com o espírito leve e vazio, gozando do torpor de quem se afoga na bebida para esquecer de si.

Não sem alguma tristeza, senti ainda mais pesado o livro que carregava nas mãos. Não estaria eu em busca deste mesmo torpor ? Senti a leve vergonha despejar em meu rosto uma fina camada de tinta vermelha.
Eu era igual na busca mas divorciado no caminho. Minha felicidade.... esta eu sentia com pesar, um fardo de toneladas que apenas eu poderia carregar. Não a entregaria a nenhuma transcendência, embora sentisse que esta, ainda que criada, aliviaria-me de tanta responsabilidade.
Segurei ainda mais forte a sacola com a minha "Ética". Meus dedos apertavam as alças e estas insistiam em escorregar. Eram como areia nas minhas mãos.
Não havia garantia alguma para mim. Certeza alguma me conferia que um dia ostentaria um sorriso tão largo, vestiria uma roupa tão bela e que teria sobre minha cabeça uma luz, ainda que artificial.

Decerto minha ruína e minha falência eram irrecorríveis.
Quis evaporar-me rapidamente. A bela cena transformou-se em horror, e os sorrisos, as roupas e as luzes se borraram. Era agora uma distorção incompreensível. Apertei ainda mais a sacola e senti o livro mais pesado do que outrora.
Apressei os passos. A sacola decolava de minhas mãos......para frente....para trás....... nervosamente riscavam um arco no ar, bailando com o ritmo acelerado das minhas pernas.

Mas a sacola bailou demais, riscou demais. Perdeu-se. Chocou-se com um cone de plástico postado em meio a massa dos crédulos.
Não senti o choque, talvez tenha ouvido quando o cone se espatifou no chão. Mas o turbilhão dentro de mim impediu-me de qualquer reação, estava em outro mundo.

Com o cone no chão, esparramado, tendo sido derrubado pela sacola pesada que carregava a "Ética", ouvi claramente a minha sentença, dita por uma bela boca sorrindo, com um bom terno bem cortado, com um espírito vazio e leve, expurgado de todo o mal:

- "Eu não acredito nessas pessoas de São Paulo. O filho da puta nem olhou pra trás !".
No que foi complementado por uma outra alma bem-aventurada:

- "É foda né. Gente de cidade grande...."

Um comentário:

Richard Lowenthal disse...

Interessante... gente de São Paulo que polui qualquer pureza de ternura por esperanças de um mundo ingênuo e simplório.

Estou melhorando neste estilo. Devia também tentar o meu um dia.

Abraço.